Amílcar Cabral e os ventos da Guerra Fria

Amílcar Cabral navegou com astúcia as águas agitadas da Guerra Fria. A afinidade do líder do PAIGC com o socialismo e os apoios da Europa do Leste conviveram com um anti-imperialismo não alinhado.

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Projecção de filme sobre o PAIGC e a luta de libertação na Guiné, em Colónia, Alemanha (1964 - 1966) Casa Comum/Fundação Mário Soares

O vento é uma metáfora recorrente para descrever o anticolonialismo. Num discurso famoso, em 1960, o líder britânico Harold Macmillan designou o crescente nacionalismo em África como um “vento de mudança”. Imagens semelhantes foram usadas por figuras tão díspares como o primeiro Presidente do Gana, Kwame Nkrumah, que acrescentou que esse “vento” era um “furacão”, ou António de Oliveira Salazar, que se queixou de um “vento de revolta” soprando no continente africano. Tal noção põe o Estado Novo, e a sua posição de recusa da descolonização, contra o vento, ou seja, lutando contra uma força da natureza imparável e incontrolável — e, por extensão, reduz Amílcar Cabral e seus pares a meros executantes de um destino inevitável.

No entanto, 13 anos de guerra em três territórios, mais de cem mil mortos e os apoios concedidos a ambos os lados do conflito, oriundos dos quatro cantos do planeta, sugerem um processo muito mais caótico, complicado e imprevisível. Se o anticolonialismo foi um vento, então foi uma entre outras correntes soprando em diferentes sentidos e direções.

Mesmo que estivesse contra o vento da descolonização, o Estado Novo estava certamente alinhado com outras correntes, nomeadamente com o vento da Guerra Fria. Firmemente integrado no bloco ocidental, membro fundador da NATO e aliado ao maior potentado militar e económico da altura, o Estado português assegurou o armamento, o influxo financeiro e a cobertura diplomática necessários para prosseguir a guerra sem fim à vista. Olhado desta perspetiva, é o movimento liderado por Amílcar Cabral, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que lutou contra um furacão. Dito por outras palavras: o PAICG enfrentou não apenas o colonialismo português, mas toda a ordem internacional da Guerra Fria.

Anti-imperialismo não alinhado?

A Guerra Fria é um conceito abstrato, ambíguo em termos políticos e historiográficos. Para uns, é uma expressão do imperialismo norte-americano e da resistência anti-imperialista; para outros, um processo expansionista da União Soviética e de contenção desse expansionismo. Há quem veja na Guerra Fria uma competição ideológica entre visões de modernidade (capitalismo contra comunismo) ou uma rivalidade geoestratégica entre Estados aliados em blocos, defendendo os seus interesses nacionais (bloco ocidental contra bloco do Leste). Amílcar Cabral desafiou cada uma destas conceções.

Desde o início que Cabral defendeu para o PAIGC uma posição de não-alinhamento com qualquer um dos blocos político-militares, argumentando que uma adesão à lógica da Guerra Fria fortaleceria Portugal. Cabral via no apoio ocidental ao Estado Novo motivações não apenas estratégicas (NATO), mas também económicas. Empresas estrangeiras eram responsáveis por grande parte das importações, exportações e investimentos em Angola e Moçambique, pelo que para Cabral, em última análise, estas nem deviam ser consideradas colónias portuguesas: Portugal era “o polícia e o cobrador de impostos” ao serviço de um imperialismo maior. Logo, a luta do PAIGC era não só anticolonialista como também anti-imperialista.

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Amílcar Cabral com uma delegação do PAIGC durante a visita à ex-Jugoslávia em 1972, junto a um monumento alusivo à II Guerra Mundial Casa Comum/Fundação Mário Soares

A noção de um anti-imperialismo não alinhado, soando contraintuitiva, pode ser mais bem explicada, e ainda que de modo algo esquemático, se recorrermos à rosa dos ventos. A Guerra Fria era um confronto entre o Este e o Oeste, enquanto o imperialismo era uma relação entre o Ocidente e o Sul global (ou, recorrendo a outra convenção, entre Primeiro e Terceiro Mundo). Portanto, enquanto a Guerra Fria era um conflito entre blocos de Estados face ao qual o PAIGC assumia uma posição de neutralidade, o seu anti-imperialismo implicava uma posição de resistência a uma política, nomeadamente a política de exploração colonial.

Os apoios vindos do Leste

Esta lógica não era, contudo, assim tão fácil de sustentar. Nem os laços entre o Estado Novo e a NATO, nem os laços entre o PAIGC e o mundo socialista eram inteiramente destituídos de uma certa afinidade. Porém, no plano ideológico, Amílcar Cabral recusou desde cedo o rótulo de comunista. Tem sido amplamente citada a sua declaração numa sessão pública na Universidade de Londres, em 1971, quando lhe perguntaram se era marxista: “Devem julgar-me pelo que faço na prática. Se decidirem que é marxismo, digam a toda a gente que é marxismo. Se decidirem que não é marxismo, digam-lhes que não é marxismo. Mas os rótulos são da vossa conta; nós não gostamos desses rótulos.” Mudando os termos do debate, Cabral afirmou que o PAIGC lutava pela liberdade, democracia, paz, progresso, desenvolvimento e justiça social — ou seja, por valores oficialmente apregoados por ambos os lados da Guerra Fria.

Isto não o impediu de dizer, numa famosa intervenção em Cuba, que as novas nações independentes tinham no socialismo o único caminho alternativo à dominação imperialista, ou, num discurso na URSS, que os ensinamentos de Lenine eram uma inesgotável fonte de inspiração para qualquer combate anti-imperialista. Mais do que levar à letra as palavras de Amílcar Cabral, é na sua maleabilidade que encontramos uma opção política: a de promover a causa do PAIGC nos dois lados da chamada “cortina de ferro”.

Já no plano material, este equilíbrio era mais difícil de atingir. Os principais apoios logísticos vinham do Bloco do Leste, da China e de Cuba, o que facilitava a acusação, repetida pelos órgãos do Estado Novo, de que o PAIGC estaria a soldo do expansionismo soviético, o qual pretenderia partir da Guiné-Bissau para conquistar Cabo Verde e desse modo penetrar e controlar o Atlântico. A estratégia de Cabral foi, mais uma vez, a de tentar dissociar as suas relações com os soviéticos da lógica de bipolaridade da Guerra Fria. O PAIGC, segundo ele, recebia armas de quem quer que lhas desse, desde que sem contrapartidas. E quem não gostasse do facto de a maior parte do armamento dos guerrilheiros do PAIGC ter origem a leste tinha bom remédio: dar-lhes também armas ocidentais.

Numa comissão do Congresso norte-americano, em 1970, o representante republicano Ed Derwinski perguntou se o PAIGC recebia material militar do bloco soviético, ao que Amílcar Cabral respondeu que, infelizmente, não recebiam tanto quanto queriam. Inquirido sobre se esse fornecimento se podia traduzir numa influência comunista sobre o PAIGC, Cabral respondeu que não havia razão para acreditar nisso, uma vez que Portugal também recebia apoio da NATO e, no entanto, não se deixara contaminar pelos seus valores democráticos.

Era uma resposta espirituosa, que denunciava indiretamente a hipocrisia ocidental, ao mesmo tempo que refletia que o poder neste tipo de relações não é sempre evidente nem unidirecional — como mostrará a historiadora Natalia Telepneva nestas mesmas páginas, os movimentos anticoloniais souberam captar apoios vindos do Leste sem se tornarem meros peões manipulados pelos Estados socialistas, ao contrário do que repetiam os discursos de Salazar e Marcelo Caetano.

O PAIGC, o Ocidente e o Estado Novo

Não obstante, Amílcar Cabral preocupava-se em evitar a possibilidade de uma posição de dependência. Considerava, contudo, que a melhor solução não era enfraquecer os contactos com o campo comunista, mas sim contrabalançá-los. O PAIGC apostou então, sobretudo a partir de 1968, numa campanha junto do público ocidental, procurando separar a Guerra Fria na Europa da causa da autodeterminação africana. Mobilizou intelectuais, jornalistas, cineastas, estudantes e parte da imprensa internacional. Formaram-se comités civis de solidariedade com o PAIGC e com os outros movimentos das colónias portuguesas dentro de quase todos os países da NATO. Rasgando a cartografia da Guerra Fria, em 1972 Cabral recebeu doutoramentos honoris causa tanto na americana Lincoln University como no Instituto de Estudos Africanos da Academia de Ciências Soviética.

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Conferência de imprensa de Amílcar Cabral em Cuba, em 30 de Julho de 1970 Sorva - Jornal Granma/Casa Comum/Fundação Mário Soares

A nível governamental, o apoio à causa do PAIGC revelou-se bem mais limitado. Entre os governos não comunistas, o maior apoiante foi a Suécia, que se assumia como neutra na Guerra Fria. Já nos anos 70, o PAIGC conseguiu também ajuda humanitária (medicamentos, material escolar, etc.) doada pela Dinamarca, pela Noruega e pelos Países Baixos. No entanto, beneficiando do seu valor geoestratégico para a Guerra Fria na Europa (especialmente as bases aéreas em Beja e nos Açores), o Estado Novo manteve fortes relações com aliados de peso, incluindo a França e a Alemanha Ocidental (de onde obteve investimentos e equipamento militar), bem como os EUA e o Reino Unido (que ajudaram a impedir sanções no âmbito da NATO e da ONU).

Ao contrário do que declarara Salazar em 1965, os portugueses não combatiam “sem alianças, orgulhosamente sós”. Além da NATO, Portugal era membro fundador da EFTA e da OCDE, tendo ainda aderido, nos anos 60, ao FMI, ao Banco Mundial e ao GATT, entre outras organizações e acordos internacionais. Já em 1972, assinou um acordo comercial com a CEE.

A crescente integração internacional de Portugal não se deu apenas num plano institucional, mas também em termos de relações económicas e culturais. Ao longo das guerras coloniais, houve um boom turístico, sobretudo vindo da Europa, tendo também aumentado exponencialmente as exportações, importações e investimentos estrangeiros em Portugal e nas colónias. Houve, de facto, alguma opinião pública no exterior que se mostrou crítica da política colonial portuguesa, mas coexistiu com toda uma outra imprensa, conservadora, que era mais benevolente para com a posição portuguesa do que para com a luta anticolonialismo.

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Amílcar Cabral no IX Congresso da ex-URSS Casa Comum/Fundação Mário Soares

A imagem externa de Portugal não era moldada exclusivamente pelas guerras: entre 1961 e 1974, foram produzidos nos EUA e na Europa Ocidental mais de quarenta filmes de ficção cujo enredo se desenrolava em território português, pejados de praias e fado, mas sem menções ao conflito armado em África. O Estado Novo nunca esteve isolado e, como sabemos, no final a sua derrota não veio de fora, mas sim de dentro, desgastado pela guerra, sobretudo na Guiné.

Em suma, o vento da Guerra Fria tornou a descolonização mais lenta e violenta, com duradouras repercussões após a independência, mas não impediu o triunfo de uma visão que desafiou a ordem internacional, derrotando um Estado que tentou reificar essa mesma ordem.


Ler mais:

Luís Fonseca e Olívio Pires (eds.), A Luta Criou Raízes: Intervenções. Entrevistas. Reflexões. Artigos 1964-1973 (Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2018);

Odd Arne Westad, The Global Cold War: Third World Interventions and the Making of Our Times (Cambridge University Press, 2007);

Rui Lopes, ‘Conflicting Winds: The liberation struggle in Guinea-Bissau and the quest to decolonize the Cold War’, Journal of Cold War Studies [publicação prevista para o inverno de 2023/4]


Rui Lopes é investigador do IHC/IN2PAST e professor em Birkbeck, Universidade de Londres. É autor do livro West Germany and the Portuguese Dictatorship 1968-1974: Between Cold War and Colonialism (Palgrave, 2014)

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