André Sousa, 75 mil km em mota: o mundo inteiro num piloto só
Três anos e 75.000 quilómetros à volta do mundo, numa mota cuja velocidade média é 50 a 60 por hora. Dia 8 de Abril cruza a meta em Portugal. Querem fazer igual? “É possível”, diz ele.
Da primeira vez que a Fugas escreveu sobre André Sousa, ele era um miúdo desconhecido que se destacara por ter sido o mais rápido a percorrer os 11 países da América do Sul numa moto de 125 centímetros cúbicos de cilindrada, como registado no International Book of Records. Já era bem-disposto na altura, com uma gargalhada sonora e borbulhante, um bom humor indefectível e aquele entusiasmo puro e contagiante dos jovens que realmente querem fazer qualquer coisa da vida e ainda não receiam correr riscos.
Nessa altura, já se preparava para o seu segundo desafio, bem mais exigente e ambicioso, numa moto de bem menor potência: ser o primeiro a dar a volta ao mundo a solo e em contínuo, através de seis continentes, numa Honda Monkey, também de 125 cc, mas com apenas uns 70 centímetros de altura e a uma velocidade média de 50 a 60 quilómetros por hora. A pandemia de covid-19 bem tentou empatá-lo, mas, a ferver de adrenalina e impetuosidade, ele arrancou de Portugal a 12 de Julho de 2020, mesmo com algumas fronteiras ainda fechadas na Europa, para não desperdiçar meses de preparativos.
Agora, três anos e muita cobertura noticiosa depois, aquele que alguns chamam de “moicano” (pela crista de pêlo que colou no capacete) está a percorrer os seus últimos quilómetros e a cronometrá-los para entrar na fronteira de Elvas exactamente a 8 de Abril, 1000 dias após ter partido para essa epopeia.
Motociclista com palmarés desde os 13 anos, formado em Gestão pela Coimbra Business School, o rapaz de Oliveira de Azeméis parece o mesmo. Continua com o humor em alta, ainda diz frases como “foi uma loucura do caraças!”, retira satisfação até das piores experiências, persiste em responder com risinhos a perguntas sobre assuntos que acha melhor manter reservados e continua sempre pronto para festas, música e gente nova.
André Sousa parece o mesmo, sim, mas não é. Uns 75.000 quilómetros depois, a diferença é subtil, mas está lá. E não é só porque o acidente que teve nos Estados Unidos, quando um camião o atirou para fora da estrada, lhe causou estragos na coluna que persistem em cinco vértebras; não é só porque foi raptado e espancado no Nepal, onde o deixaram para morrer num pedaço de terra que viu colorido pelo seu próprio sangue; não é só porque sentiu o terror indefeso e a tristeza desoladora de três terramotos, um na Grécia, outro na Guatemala e o terceiro na Turquia; não é só porque foi assaltado, preso e sujeito a outras aflições que só quer contar em livro. André está diferente porque agora traz consigo uma bagagem tremenda – de ordem humana, cultural, logística – que garante que nenhuma formação académica lhe poderia ter dado.
Pense-se no que é viajar sozinho três anos, sem ninguém conhecido ao caminho, a confiar apenas em estranhos; pense-se no que é controlar cada euro para comer fora durante três anos, umas vezes em sítios onde a refeição mais barata é um hot dog a 15 euros e outras em locais onde o pequeno-almoço é cobra estufada; pense-se no que é dormir o equivalente a um ano inteiro numa tenda minimal, que cede ao peso da neve, rola com a força do vento e não trava formigas-de-fogo cuja mordida é igual a uma queimadura de cigarro.
Depois há ainda que imaginar burocracias intermináveis para se cruzar a fronteira entre diferentes países e províncias; incontornáveis subornos só para garantir o direito a prosseguir viagem e a preservar os poucos bens que cabem na minimota; imprevistos como o conflito armado da Birmânia, fortes tempestades de areia no Sara e cheias que cortaram as estradas de Bornéu, onde a alternativa foi transportar a mota por canoa e jangada de madeira.
“Passámos por muita coisa e já nem me lembro de tudo – só vendo as fotos é que me apercebo realmente do tanto que nos aconteceu”, diz André. Usa a primeira pessoa do plural muitas vezes. Também nisso mudou. É um “nós” em que inclui as centenas de pessoas que o ajudaram ao caminho: patrocinadores oficiais e mecenas privados, anónimos que o seguiam nas redes sociais e foram fazendo donativos ao saberem dos seus apertos, e habitantes que, nos países por onde andou, lhe ofereceram uma refeição, o deixaram dormir em sua casa, lhe resolveram problemas e o ajudaram de várias formas, só por generosidade e altruísmo.
André já tinha ficado a conhecer o melhor do ser humano na sua volta pela América Latina, em 2018, mas agora tem da espécie um conhecimento mais profundo, que o emociona. É certo que entre os pontos altos da aventura tem a estadia numa cidade-fantasma do Chile, a travessia do Grand Canyon, a dormida numa das casas que pertenceu ao narcotraficante Pablo Escobar, a noite passada num cemitério do deserto de Atacama e o contacto humano num campo de refugiados de venezuelanos.
Mas duas outras histórias o sensibilizaram particularmente, a começar pela do “pai adoptivo” que fez na viagem, o americano John Hubbard, que, ao saber da sua passagem pelo Texas, lhe ofereceu estadia perto de Dallas. André não planeava passar por lá, mas o seu instinto convenceu-o a fazer o desvio de 600 quilómetros e não se arrepende: “Ele tinha um museu brutal dentro de casa, com uma colecção de mais de 50 motos, e eu contava passar lá dois dias, mas acabei por ficar 11. Ele e a esposa levaram-me ao basebol, a um rodeo, a uma concentração de carros e custou-me muito vir embora porque me senti mesmo em família.”
Num paralelo mais modesto, André sente o coração apertado ao lembrar-se da outra história, que confirma a sua anterior experiência latina. É sobre um casal do Equador que começou por cozinhar-lhe o repasto raro de um frango e, se ele deixasse, não o teria sequer provado, ficando-se pelo arroz de plátano para garantir ao português a melhor dose da refeição. Vivendo numa cabana de bambu partilhada com quatro filhos e com casa de banho no exterior, onde os duches eram a balde, a família também insistiu para que André dormisse na cama de solteiro do casal enquanto marido e esposa se aninhavam com as crianças no beliche.
“As pessoas são o melhor do mundo. Tiram do pouco que têm para ajudar e dar uma alegria ao outro. O mais importante não é o destino da viagem nem os monumentos que vemos ao caminho, por muito bonitos que sejam – o melhor de tudo, o que vale mesmo a pena, são sempre, sempre as pessoas de bom coração”, garante. “É uma aprendizagem que me vai ficar para a vida toda; vale mais que um doutoramento.”
O balanço geral da epopeia ainda não está feito, que a viagem só termina no dia 8 – com a entrada em Portugal, via Badajoz, prevista para as 10h30 e, hora e meia depois, promessa de festa rija em Avis – mas André já escolheu o foco da sua mensagem-base. Despretensioso, cheio de sentido prático e tão seguro quanto sereno, o jovem de 27 anos proclama: “O que eu quis provar é que podemos conhecer o mundo sem gastar muito dinheiro. Se estivermos dispostos a prescindir de certas coisas e nos concentrarmos no essencial, dá para fazer uma viagem como esta gastando só 20 euros por dia. É fácil? Não, claro que não é. Exige muita resiliência e preparação prévia. Até os momentos de pausa têm que ser programados. Mas se nos empenharmos 100% em alguma coisa, como eu fiz durante os cinco anos da minha vida que dediquei a este projecto, conseguimos ultrapassar qualquer desafio e, mesmo perante situações negativas, nunca vamos querer desistir.”