Açores
O retrato de “um verdadeiro lugar açoriano”, em São Miguel
O fotógrafo açoriano Rui Soares passou dois meses em Remédios, na ilha de São Miguel, e trouxe consigo o retrato “um verdadeiro lugar açoriano”. O projecto Cara de Inverno está em exposição na Narrativa.
“Paisagens verdejantes, montanhas” e um clima temperamental caracterizam o lugar de Remédios, no concelho de Lagoa, na ilha de São Miguel, nos Açores. Ao longo de um período de cerca de dois meses, na transição entre 2022 e 2023, o fotojornalista açoriano Rui Soares, colaborador do jornal PÚBLICO, passou os seus dias na companhia dos 250 a 300 habitantes do pequeno lugar, uma comunidade “que é fortemente ligada à terra, às tradições agrícolas e pecuárias” e que tem um afecto especial pelo Espírito Santo.
“Já existem muito poucos lugares nos Açores”, explica Rui Soares ao P3, aludindo as “três ruas”, que compõem aquela povoação. Remédios fica a caminho “de um dos sítios mais icónicos da ilha de São Miguel, a Lagoa do Fogo” e por esse motivo muitos turistas passam por lá, mas nunca param. “O meu objectivo, com o projecto, era dar a conhecer um verdadeiro lugar açoriano.” Foi assim que nasceu o projecto Cara de Inverno, Lugar de Remédios de Lagoa, desenvolvido durante a masterclass da Narrativa, orientada pelo fotojornalista Mário Cruz.
Em Remédios, “todos se conhecem”, “todos sabem quem é quem”, conta. Ao longo do tempo, o fotógrafo foi-se apercebendo dos hábitos particulares de cada um dos habitantes, “da senhora que vai ao minimercado e do homem que vai ao café sempre à mesma hora porque sabe que lá irá encontrar os amigos”, descreve. “São hábitos quase inconscientes.”
A maioria dos habitantes tem trabalhos rurais, “na lavoura ou nas vacas”. “É uma comunidade que se apoia muito. Os filhos de todos são educados por todos.” Não é um lugar onde a população seja envelhecida. Há crianças, poucos jovens, há adultos e idosos. “Quem saiu para emigração, normalmente para os Estados Unidos, não voltou, mas muita gente quis ficar porque conseguiu, com o passar dos anos, ter uma vida normal — ao contrário do que acontecia antigamente. Antigamente a vida era muito dura.”
O trabalho infantil era, nos anos 1950 e 60, algo comum na ilha de São Miguel. “Crianças com sete ou dez anos acordavam cedíssimo, antes de o Sol nascer, para irem cuidar de vacas ou lavrar os campos”, recorda. “As pessoas aceitavam esse destino como algo que tinha de ser. Senão não havia comida na mesa.” Rui conhece Remédios desde a infância. “Sempre vivi nas proximidades e a minha mãe deu aulas ali.”
Talvez tenha sido a dureza do trabalho e da vida em Remédios que intensificou a fé que sentem os seus habitantes, devotos do Espírito Santo. “Sentem por ele uma adoração especial e agradecem-lhe quando têm um bom cultivo, um bom ano de leite. Há pessoas que dedicam divisões inteiras das casas ao culto não de Jesus Cristo, não de Deus ou da Nossa Senhora, mas sim, especificamente, do Espírito Santo.”
Para Rui Soares, o desenvolvimento do projecto foi uma experiência “emotiva”. “Foi algo muito diferente do que faço normalmente enquanto fotojornalista”, reflecte. “Passei dias inteiros com as pessoas, fotografei-as nas suas casas, conheci aquela realidade a fundo. Foi bonito.”
Cara de Inverno, que está em exposição na Narrativa, em Lisboa, até dia 15 de Abril, é composto por mais de 100 imagens que Rui pretende compilar, brevemente, num fotolivro.