Xuxa, 60 anos — ou ser criança nos anos 1980 no Brasil

A apresentadora é uma figura incontornável para toda uma geração de “baixinhos”.

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Xuxa Meneghel era conhecida como a "Rainha dos Baixinhos" DR

Foi uma sensação estranha ver um episódio de Xou da Xuxa no serviço de streaming da Globo. A nave envolta em gelo seco é familiar para qualquer criança brasileira dos anos 1980, mas os decibéis da voz aguda parecem, hoje, exceder o limite do razoável. Em menos de 10 minutos, desisto da missão de reviver a infância: há coisas que são melhores nas nossas memórias. E é a ela que recorro para a crônica desta segunda-feira, 27, dia em que Xuxa completa 60 anos.

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Xuxa em sua nave espacial no especial do "Xou da Xuxa" do GloboPlay. Reprodução

Confesso que nem sempre é bom voltar a um tempo em que a TV servia de babá eletrônica de toda uma geração – e quase ninguém questionava. Em que andávamos sem cinto de segurança no carro – de preferência, em pé no meio dos bancos, a postos para voar pelo vidro a qualquer frenagem brusca. Em que tínhamos que conviver com fumaça de cigarro em ambientes fechados – o que obrigava meu pai a pedir encarecidamente para pessoas das mesas próximas do restaurante pararem de fumar porque a filha era super alérgica.

Mas não posso deixar de pensar com carinho nos anos que passei com a "Rainha dos Baixinhos" – seu programa matinal durou dos meus 4 aos meus 10 anos. Era na presença da Xuxa que eu espalhava os cadernos e lápis para fazer as lições de casa (já começou ali o multitasking).

Perdi a conta de quantas vezes dancei músicas dela nas festinhas da escola – inclusive com direito à “xuquinha” característica no cabelo. Ou de quantas vezes coloquei na vitrola os LPs com músicas para lá de grudentas – os mesmos que, segundo a lenda urbana, viraram cânticos demoníacos quando tocados de trás para frente. Ou, ainda, de quanto atazanei minha mãe comprar uma Xuxa de pano de quase 1 metro – aquela que supostamente tinha a índole de Chuck, o boneco assassino.

Também não vou me esquecer de quando entrei num estádio pela primeira vez, justamente para ver um show dela. Embora a arena ficasse ao lado de casa e eu pudesse ouvir a torcida comemorando os gols, futebol naquela época não era "coisa de menina" e foi só por causa da Xuxa que ocupei um lugar na arquibancada. E lembro-me como se fosse hoje do momento em que, ao final da apresentação, minha mãe me levantou em direção à janela do ônibus da equipe – e parecia que ela tinha me visto e até acenou para mim. Que emoção!

Guardei por anos e anos a foto autografada que meu tio que trabalhava na Varig teve o capricho de pedir quando a encontrou num voo. E me gerou uma emoção estranha quando, já adulta, passei pela primeira vez pela rua Saturnino de Brito. Na hora, a mente repetiu: Rua Saturnino de Brito, 74, Jardim Botânico, Rio de Janeiro. A caixa postal é 22470. Quantas vezes escrevi cartinhas para o programa (embora nunca as tenha enviado pelo correio). No mínimo, posso dizer que Xuxa me ajudou a aperfeiçoar a caligrafia.

"Lua de Cristal" é uma ficção que usa elementos da história de Xuxa

Xuxa também fez com que muitas crianças brasileiras conhecessem o cinema. Além das estreias de Os Trapalhões, só nos filmes dela as famílias faziam fila na praça principal rumo à única sala de cinema da cidade. Super Xuxa contra Baixo Astral (1988) e Lua de Cristal (1990) foram sucessos de bilheteria do cinema nacional. Recentemente, numa entrevista, o apresentador Pedro Bial resumiu bem os feitos sui generis de Xuxa: recordista de venda de LPs sem ser cantora, recordista de bilheterias de cinema sem ser atriz, apresentadora de mais de 10 programas de TV com incontáveis horas no ar, muitas ao vivo. Gravou programas na Argentina, na Espanha, nos Estados Unidos e, pelo que me dizem, também fez parte da vida dos portuguesinhos, ainda que de uma maneira mais distante.

Ela produziu tantas e tão queridas memórias que deixamos passar as gafes que aconteciam naquelas manhãs. Desde exibir um lauto café da manhã para as crianças de um país com milhões de famintos até ter assistentes de palco todas loiras num Brasil completamente multiétnico. De vestir roupas sensualíssimas a não ter sido preparada para lidar com crianças quando da sua estreia. Essas questões e as celeumas com a diretora Marlene Mattos, com quem cortou relações, devem ser abordadas numa série documental produzida por Bial para o GloboPlay. A estreia está marcada para o segundo semestre.

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As paquitas, assistentes de palco obrigatoriamente loiras, são impensáveis nos dias atuais. Divulgação

Xuxa não é irrepreensível e isso a torna um fenômeno mais complexo de entender. Tem algo de carisma, certamente. Tem algo do poder da TV aberta sobre as massas na década de 1980, pré-internet. E tem o imponderável, que é aquilo nos faz (ao menos os da minha geração) voltar à infância quando ela entra ativa e lindamente na terceira idade.


A autora escreve em português do Brasil.

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