Amílcar Cabral e o anticolonialismo em Portugal
No primeiro artigo desta série, o historiador José Neves analisa a relevância de Amílcar Cabral para a história do Portugal Contemporâneo e nas disputas memorialísticas do presente.
Em 1961, nas mesmas semanas em que se iniciava a luta armada em Angola, Amílcar Cabral dirigiu uma saudação aos comunistas portugueses, por ocasião do quadragésimo aniversário do seu Partido. Publicada no jornal clandestino Avante!, a saudação dizia: “Para o nosso povo, que vai liquidar completamente o colonialismo português, o Partido Comunista Português é um aliado e até agora o único depositário e intérprete da vontade do povo português de viver na amizade e na colaboração com todos os povos do Mundo, na base de igualdade de direitos e deveres.”
As relações de amizade entre o PCP e o Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC) remontam praticamente à fundação do segundo e ainda perduram. No último 20 de janeiro, passavam 50 anos sobre o assassinato de Amílcar Cabral, os dois partidos juntaram esforços para organizar uma sessão de homenagem ao líder histórico do PAIGC. A sessão teve lugar em Lisboa e a ela compareceram embaixadores de Cuba, da África do Sul e de Timor-Leste, além de representantes diplomáticos de países como a Argélia ou a China.
Contudo, diferentemente do que acontecia em 1961, hoje o PCP já não é o único ator político português a subscrever os princípios anticoloniais a que Cabral entregou parte da sua vida. Esses princípios são agora perfilhados pelo próprio regime que vigora em Portugal. Desde 1976 que o preâmbulo da Constituição da República Portuguesa tem inscrita a ideia de que a descolonização é um fundamento histórico e um princípio definidor da natureza democrática do atual regime, ideia esta muito recentemente enfatizada pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, em discurso de homenagem a Amílcar Cabral.
Neste pequeno ensaio, procuro compreender o caminho que os princípios anticoloniais fizeram em Portugal ao longo dos últimos 70 anos — e a importância de Amílcar Cabral para esta história.
Bissau, Bandung e Estoril
Amílcar Cabral chegou a Lisboa em 1945 para estudar no Instituto Superior de Agronomia. Durante os anos da licenciatura, fez amizade com outros jovens africanos que vieram a ter um papel maior no fim do último império europeu, casos do moçambicano Marcelino dos Santos, do angolano Agostinho Neto ou da são-tomense Alda Espírito Santo. Contudo, foi apenas ao longo dos anos 50 que as posições de Amílcar Cabral ganharam um claro sentido anticolonial, a ponto de em 1960 deixar definitivamente Lisboa rumo a Conacri, capital da República da Guiné, antiga colónia francesa. Daqui comandaria a luta de libertação da Guiné e de Cabo Verde.
Na decisão de partir para Conacri, pesou, de forma mais imediata, o impacto de massacres como o de Pidjiguiti. No dia 3 de agosto de 1959, o colonialismo português matou dezenas de trabalhadores portuários africanos que se encontravam em greve em Bissau, no cais de Pidjiguiti. Mas a partida de Cabral para África foi igualmente motivada pelo horizonte de esperança rasgado pelas independências da República da Guiné, do Gana, de Marrocos e da Tunísia, assim como por iniciativas como a Conferência de Bandung, realizada na Indonésia em 1955 e na qual convergiram Estados e movimentos provenientes de várias geografias do hemisfério Sul.
Antes disso, entre 1952 e 1955, o recém-licenciado Amílcar Cabral trabalhara para o Estado colonial na Guiné, uma experiência profissional que frustrou as suas expetativas quanto à possibilidade de as autoridades coloniais tutelarem uma política conducente à melhoria das condições de vida da população; e um período durante o qual Cabral começou a desenvolver pequenas iniciativas críticas da ordem colonial vigente, para o que relevou o conhecimento travado por ele e Maria Helena Rodrigues, sua primeira mulher, com a militante comunista Sofia Pomba Guerra.
Na Bissau de então, esta farmacêutica portuguesa foi um elemento de agitação anticolonial. Apresentou Cabral a Aristides Pereira (que viria a ser o primeiro Presidente da República de Cabo Verde) e inspirou a formação política de homens como o guineense Osvaldo Vieira. Disto mesmo testemunhou Cabral já no final dos anos 60: “Uma pessoa que teve influência no trabalho do nosso partido em Bissau foi uma portuguesa. Só quem não está no partido é que não sabe isso. Ao Osvaldo, a primeira pessoa que lhe ensinou coisas para a luta, foi ela, não fui eu.”
Porém, a razão por que o PCP se tornou o interlocutor português predileto do PAIGC não se limita à memória que homens como Cabral e Aristides guardavam de Sofia. No quinto congresso dos comunistas portugueses, realizado clandestinamente no Estoril, em 1957, o PCP aprovou uma resolução em que declarava o apoio do partido à autodeterminação dos povos colonizados pelo império português. Na resolução, o dirigente comunista Jaime Serra concluía que as situações de opressão verificadas nas colónias eram “o resultado de 500 anos de colonialismo que o regime salazarista não tem senão agravado nos últimos 30 anos”.
Esta posição do PCP fazia jus aos princípios anticoloniais preconizados pela teoria leninista do imperialismo, princípios que o PCP não valorizara de forma constante no passado. Era também uma posição que estava em sintonia com o interesse soviético pelos movimentos anticoloniais no contexto da Guerra Fria. Mas, para a resolução de 1957, não terá sido menos importante a leitura que os comunistas portugueses foram fazendo de acontecimentos como a já referida Conferência de Bandung. Sobre esta, o próprio Serra escrevera logo em 1955: “É cedo ainda para nos apercebermos de toda a importância da Conferência de Bandung e das profundas repercussões que virá a ter nos acontecimentos mundiais dum modo geral, mas desde já podemos dizer que a sua realização terá efeitos decisivos na luta libertadora dos povos coloniais e terá para nós, portugueses, uma importância extraordinária pelas incidências que o problema da luta dos povos das colónias portuguesas tem na luta do próprio povo português contra o domínio fascista”.
Do Liceu Amílcar Cabral à Ponte Vasco da Gama
Durante a luta de libertação, Amílcar Cabral e os seus camaradas do PAIGC contribuíram decisivamente para que as independências africanas e a democracia portuguesa tivessem uma génese comum. Dirigiram-se aos soldados portugueses, apelando a que abandonassem a sua missão colonial e se juntassem ao combate antifascista em Portugal. Cuidaram, uma e outra vez, de estabelecer uma diferença de natureza entre os poderes coloniais e a generalidade do povo português. Acompanharam com entusiasmo episódios da resistência à ditadura de Salazar, do assalto ao Santa Maria até aos protestos dos assalariados rurais no Couço, passando pelas aventuras do general Humberto Delgado.
Mas o contributo de Cabral para a história comum do anticolonialismo africano e da democracia portuguesa não se esgotou no seu tempo de vida. A sua figura acompanhou quem, após o 25 de abril de 1974, saiu à rua para exigir que se interrompesse o envio de soldados portugueses para África. No Porto, nos mesmos anos de Abril, estudantes pró-maoístas do Liceu Dom Manuel II destronaram pela segunda vez o antigo rei, passando a chamar à sua escola Liceu Amílcar Cabral. Em Lisboa, já em 1977, o Centro de Informação e Documentação Anticolonial passou a identificar-se como Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral (CIDAC). E, ao longo dos anos 80, Cabral continuou a ser uma referência na paisagem memorialística portuguesa, de tal maneira que o seu nome continua a designar bairros, ruas e travessas de diferentes concelhos — de Viana do Alentejo à Moita, de Setúbal à Amadora, de Loures a Sintra, de Sines ao Entroncamento.
Contudo, é também verdade que, ao nos aproximarmos do final do século XX, a presença de Amílcar Cabral na paisagem memorialística nacional foi-se desvanecendo. Haverá razões internacionais que expliquem a diminuição do seu protagonismo. No final dos anos 90, o chamado primeiro mundo constituiu-se como o único horizonte político de desenvolvimento económico, social e cultural da humanidade e o “terceiro mundo” passou a ser uma categoria com sentido quase exclusivamente pejorativo. Afim a este processo, deu-se uma “desafricanização” da memória política do século XX. Em Cabo Verde, por exemplo, entre finais dos anos 80 e inícios dos anos 90, as notas de 500 escudos deixaram de trazer consigo o rosto de Amílcar Cabral.
Há igualmente razões locais para compreendermos a menor relevância de Amílcar Cabral no Portugal de final do século XX. Esses foram os anos das comemorações dos chamados descobrimentos portugueses. O país e a sociedade envolveram-se num ciclo celebrativo que deixou pouco espaço a outros imaginários. Dos 25 anos do 25 de abril, por exemplo, restam poucas lembranças. No início da década de 90, os vigésimos aniversários do massacre de Wiriyamu e do assassinato de Cabral suscitaram interesse jornalístico, mas, à medida que nos aproximámos de 1998, todas as atenções se viraram para o regresso de Vasco da Gama — que deu nome a grandes obras públicas, como uma ponte sobre o Tejo, e a lugares comuns do capitalismo moderno, como centros comerciais.
Do bairro da Cova da Moura ao Palácio Baldaya
Nos últimos anos, todavia, a figura de Cabral tem ganho novo relevo na cena portuguesa, inspirando instituições políticas, culturais e universitárias na hora de afirmarem o seu compromisso com os valores do anticolonialismo. Em 2021, o Padrão dos Descobrimentos e o Instituto de História Contemporânea criaram o Prémio Amílcar Cabral. Em final de 2022, na Universidade do Mindelo, a Presidência da República portuguesa concedeu a Ordem da Liberdade a Amílcar Cabral. Em janeiro deste ano, a Assembleia da República acolheu o congresso internacional “Amílcar Cabral e a História do Futuro”. Em abril de 2023, nas instalações do antigo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, terá lugar um outro grande congresso internacional de homenagem a Amílcar Cabral. E, entre março e junho deste ano, a Comissão Nacional para as Comemorações do 25 de Abril dedica uma exposição a Amílcar Cabral, no Palácio Baldaya, em Lisboa.
A este recente regresso de Amílcar Cabral à paisagem memorialística portuguesa não será indiferente a crescente visibilidade mediática do antirracismo. Essa visibilidade beneficiou da expansão de uma parte da cultura hip-hop, assim como do desassombro cívico de ativistas como Mamadou Ba, Joacine Katar Moreira ou Flávio Almada. Amílcar Cabral é hoje valorizado pelas políticas públicas de memória, mas há já alguns anos que o seu rosto se encontra representado nas paredes das ruas de bairros periféricos da metrópole de Lisboa, da Cova da Moura à Quinta do Mocho.
O regresso de Cabral também não será indiferente ao seu crescente prestígio internacional. Em 2020, a BBC elegeu-o como o segundo líder mundial de todos os tempos. Por sua vez, práticas contramemorialísticas como a iniciativa Rhodes Must Fall (Rhodes deve cair) e o levantamento do Black Lives Matter (As vidas negras importam) convidaram à revalorização de legados anticoloniais.
O regresso de Cabral, por fim, tão-pouco será indiferente à afirmação económica, política e cultural de países como a China ou o Brasil. A estátua de homenagem a Cabral que em 2000 foi erguida na cidade da Praia, Cabo Verde, foi oferecida pela China. E em 2004, Lula da Silva, agraciado com a Ordem Amílcar Cabral, na Guiné-Bissau, afirmou: “É momento de lembrar o homem que levou às últimas consequências o seu ideal de promover a ‘reafricanização dos espíritos.’ Quando os povos africanos buscam assumir a responsabilidade por encontrar respostas próprias para os desafios do Continente, recordamo-nos, com admiração, desse herói da autodeterminação.”
O mundo de Amílcar Cabral não é um país pequeno.
Ler mais:
José Neves e Leonor Pires Martins, Cabral Ka Mori – Catálogo de “Amílcar Cabral, Uma Exposição”, Lisboa, Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril, 2023.
Julião Soares Sousa, Amílcar Cabral (1924-1973): vida e morte de um revolucionário africano, Coimbra, 2016.
Luis Eslava, M.Fakhri e V.Nesiah (coord.), Bandung, Global History and International Law: Critical Pasts and Pending Futures, Cambridge, Cambridge University Press, 2017.
José Neves é professor de História na Universidade Nova de Lisboa e investigador do IHC/IN2PAST. É autor de Comunismo e Nacionalismo em Portugal e 1998 – O Ano da Expo e comissário científico da Exposição Amílcar Cabral (Lisboa, março a junho de 2023).