Michael February: “África pode acrescentar muito ao mundo do surf”

É o primeiro homem negro e africano a entrar na Word Surf League. Hoje, procura ser mais “criativo” dentro de água e mais solidário fora dela: quer mostrar que o surf pode transformar as comunidades.

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Michael February nasceu em 1993 na África do Sul André Carvalho
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Michael February André Carvalho

No início da década de 1990, depois de 40 anos a separar as pessoas pela cor de pele, o apartheid ainda se sentia em todo o lado. Lia-se “Net Blankes” (“Só brancos”) na entrada das escolas, nos transportes públicos, hospitais e restaurantes e nas lojas — ou mesmo nas praias.

Michael February nasceu em 1993, um ano antes de se realizarem as primeiras eleições livres na África do Sul. O seu pai, que cresceu sem poder surfar em muitas praias, recorda várias vezes o dia em que, na Victoria Bay, um grupo de surfistas o forçou a sair da água. Anos mais tarde, foi precisamente nesta praia que Michael venceu um dos campeonatos de surf do seu percurso.

Em 2018, tornou-se o primeiro homem negro e africano a entrar na Word Surf League — chegando ao top 34 da competição. Esteve de passagem por Portugal no início deste mês para participar no campeonato Capítulo Perfeito da Billabong. Ao PÚBLICO, fala sobre o lado criativo e social do surf, sobre a importância de ligar este desporto às comunidades e como, para onde quer que vá, carrega no seu apelido a história da escravatura.

Começaste a surfar quando tinhas dez anos. Porque é que querias aprender a surfar? E como foi esse processo?
O meu pai sempre foi surfista e acho que, na altura, queria imitá-lo nas coisas que ele fazia. Ele também me ensinou a andar de skate e tantas outras coisas. Quando era criança, costumávamos ir à praia e eu ficava a vê-lo a surfar e, por fim, quando tive idade suficiente, pedi-lhe para experimentar. Tinha uns nove, dez anos quando ele me levou pela primeira vez. Não me levantei da prancha logo à primeira, foi lá para a terceira ou quarta tentativa. Mas quando consegui… Foi provavelmente das melhores sensações que senti. E a partir daquele momento só queria surfar mais e mais e essa paixão foi aumentando.

O teu pai era surfista na altura do apartheid e estava impedido de frequentar muitas praias por ser negro. Que histórias é que ele conta sobre esta altura?
Ele não podia entrar nas melhores praias, as que têm as melhores ondas. Os surfistas negros acabavam sempre por surfar nos mesmos lugares, não tão bons, e iam formando a sua própria comunidade.

Mesmo assim, o meu pai continuou a surfar e tentava aproveitar aquilo que lhe permitiam. Claro que ele me contou muitas histórias sobre o desejo que tinha de surfar noutros lugares. Mas depois, quando eu era criança, ele levava-me a todas essas praias que já tinham sido proibidas. Isso fez-me crescer a sentir que eu podia estar e surfar em qualquer lado.

Os meus pais sofreram muito com o apartheid mas trabalharam muito para que eu não sentisse o que eles sentiram. Eu pude crescer como uma criança inocente, sem as preocupações que eles tiveram. Na escola, lembro-me que era das poucas crianças negras. Os meus pais diziam-me sempre que era bom ser diferente, que todos somos diferentes em algo, e que todos faríamos coisas diferentes. Eu cresci a sentir que era bom ser diferente.

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Michael February em Portugal Artur Cabral

O teu nome, February, também está de alguma forma ligado ao apartheid
Sim... Antigamente chegavam muitos navios de escravos à África do Sul. Quando os escravos chegavam, perdiam o seu nome. Era-lhes atribuído um novo nome, muitas vezes do mês em que tinham chegado. Daí o nome da minha família ser February [Fevereiro]. Foi o mês em que aquele navio chegou.

É por isso que há muitas pessoas na África do Sul com estes apelidos — vem de uma história de escravatura. A minha família vem de uma linha de escravatura e fico muito orgulhoso de manter este nosso sobrenome, faz parte da história da minha família.

Acabaste por ganhar um campeonato na Victoria Bay, uma das praias em que o teu pai foi obrigado a sair do mar e foi ameaçado por outros surfistas. O que significou esta vitória?
Significa muito. A minha geração cresceu sem ter de lutar contra o apartheid, mas eu respeito o passado e acho que tenho uma compreensão do que os meus pais viveram. Quando ganhei esse campeonato, era muito novo e não entendi o significado e a profundidade de ter ganhado. Para o meu pai significou muito. E agora, quanto mais envelheço mais entendo como deve ter sido para ele.

Disseste numa entrevista à Surfer que gostavas de surfar em diferentes pranchas e ondas e tentar entender cada uma da melhor forma. Enquanto surfista, precisas de estar muito atento dentro de água. Como é que trabalhas essa compreensão do mar e das ondas?
O oceano é um lugar imprevisível e especial. Cada onda é diferente. Cada linha, forma, ritmo é diferente. A força, a intensidade da onda, a sensação que temos ao surfar é diferente. Para mim, uma das coisas mais bonitas no surf é termos pranchas diferentes para apanhar diferentes ondas e para diferentes estilos de surf. Eu gosto muito de explorar esta variedade de experiências. O que realmente gosto no surf é a criatividade de estar em cima da prancha. Não fazer sempre o mesmo.

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Michael February a surfar em Portugal André Carvalho

Dizem que tens um estilo de surf único; usas pranchas antigas, és muito criativo nas ondas e dedicas-te cada vez mais ao free surfing. Porque é que decidiste afastares-te da competição?
Quando somos novos pensamos muito na competição. Todos os meus amigos diziam que queriam ser campeões mundiais. Eu sempre adorei surfar e queria ter a certeza de que o poderia fazer a toda a hora. A única maneira de isso acontecer é estar nos campeonatos mundiais. Isto começou por ser um sonho inocente e, ao longo do tempo, tornou-se um plano e um objectivo muito reais. Competi entre os 12 e os 25 anos e aí só usava as pranchas mais modernas, que permitiam o melhor desempenho... E eu gostei dessa experiência.

Mas quando estava no campeonato mundial, no top 34, fiz uma viagem de surf onde experimentei surfar em diferentes pranchas. E foi a primeira vez que senti que estava mesmo a divertir-me. Acho que foi isso que me fez parar de competir e começar a fazer o free surfing porque queria explorar o lado mais criativo de estar em cima da prancha.

Foste o primeiro homem negro e africano a entrar na World Surf League. Como é que isso te faz sentir?
É incrível… África é um lugar muito especial, cheio de talentos extraordinários. E cada vez são mais. Acho que agora há um pouco mais de luz sobre o surf africano. Claro que foi muito bom ser o primeiro negro africano na World Surf League. Espero que seja uma mensagem para as crianças, para sentirem que é possível. Espero que tenha contribuído para vermos mais jovens negros africanos nos campeonatos.

Porque é que o surf ainda é um desporto com tão pouca diversidade?
O surf sempre foi um desporto predominantemente branco. Por exemplo, em África não há muito acesso às pranchas nem ao surf. Há praias incríveis, mas as comunidades de surf são recentes e continuam a não ter o mesmo tipo de apoio e recursos que existe na Austrália, na América ou em algumas partes da Europa. Ainda lutamos por ter esse apoio. Agora existe mais e acho que as redes sociais ajudaram muito nisso. Havia pessoas que não eram conhecidas e começaram a estar debaixo das atenções por causa das suas redes sociais.

Isto é importante. É importante que as crianças encontrem pessoas que se pareçam com elas nestes campeonatos. Faz com que tenham mais confiança e que pensem que um dia também poderão estar ali. Acho que agora isto está a mudar. É um momento muito entusiasmante para o surf da África do Sul. Temos um país muito diverso e isso sente-se cada vez mais dentro de água.

Já participaste em vários projectos que levam o surf a crianças de comunidades afectadas pela pobreza e violência, como o Waves for Change. Como foi essa experiência?
Na cidade do Cabo, muitas crianças vivem muito perto do oceano, mas nunca experimentaram o surf. No Waves for Change [que entregou mais de 700 pranchas a crianças e jovens] trabalhávamos com crianças que viviam em contexto de violência, pobreza, de abuso de drogas. Foi aí que percebi o impacto positivo que o surf pode ter nas crianças e na comunidade. O surf é mais do que um desporto ou uma competição: é uma alternativa ou mesmo uma ferramenta para a saúde mental em muitos dos casos. É uma maneira de dar às pessoas uma vida melhor.

Há oportunidades que surgem com o surf: crianças que se tornam instrutoras, nadadoras-salvadoras, ou simplesmente começam a ter papéis mais positivos nas suas comunidades. E estes projectos também têm impacto positivo no surf. Estão a trazer pessoas para o desporto. África pode acrescentar muito ao mundo do surf

Enquanto surfista, que impacto achas que os atletas podem ter no desenvolvimento das suas comunidades?
Acho que todos temos diferentes abordagens. Em vez de falar muito, eu tento apenas fazer mais. Um dos projectos em que trabalho é o Sonic Souvenirs [produzido pela Vans]. É uma série em que viajamos para países para surfar e tentamos fazer uma coisa diferente. Normalmente os filmes de surf ou sobre o surf são feitos sempre da mesma maneira: os surfistas vão para muitos destinos maravilhosos, aproveitam as ondas… E é só isso.

Neste projecto tentamos incluir pessoas destes locais, conhecer a sua música, a arte do país, a cultura. Tudo se mistura na perfeição. Construímos uma espécie de narrativa visual em que as pessoas são convidadas a partilhar algo seu, do qual se orgulham, que seja realmente daquele país. As pessoas têm um espaço para partilhar a sua mensagem, a sua música, a sua cultura. Para mim, isto é maravilhoso. Sinto que agora sou uma pessoa muito mais criativa e posso oferecer algo diferente no mundo do surf.

No futuro, que transformações esperas encontrar no surf? Como é que imaginas o surf nas próximas décadas?
Espero que todas as pessoas, de várias culturas e lugares, possam surfar e tragam mudanças entusiasmantes para o surf. Precisamos de mostrar que o surf não é apenas um desporto. É uma forma de conhecermos e de nos relacionarmos com várias comunidades, com a arte, com a música, com a cultura. Mostrar que é muito mais do que um desporto. É uma forma de estar na vida.

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