Triplo salto sobre a nacionalidade
As declarações de Nelson Évora têm o mérito de questionar a lei da nacionalidade e ampliar a discussão sobre os processos de naturalização para efeitos desportivos.
Nelson Évora e Pedro Pablo Pichardo são atletas portugueses, campeões olímpicos do triplo salto. Para além do percurso desportivo, têm em comum o facto de terem nascido noutros países e terem adquirido a nacionalidade portuguesa. Ambos mantêm uma relação tensa dentro e fora do espaço desportivo. Recentemente, Nelson Évora criticou a rapidez do processo de naturalização de Pichardo, referindo que lhe foi concedida a nacionalidade em pouco meses por comparação com os restantes imigrantes que esperam cinco anos para o mesmo fim. Em seu entender, a naturalização de Pichardo representou uma “compra” da nacionalidade para efeitos de representação desportiva.
As polémicas declarações de Nelson Évora têm sido interpretadas como consequência do ressentimento pelo protagonismo desportivo de Pichardo. No entanto, essas mesmas declarações, mais do que remeterem para uma simples competitividade de egos, têm o mérito de questionar a lei da nacionalidade e ampliar a discussão sobre os processos de naturalização para efeitos desportivos.
Existe efetivamente uma diferença substantiva nos tempos de naturalização. A Lei da Nacionalidade estabelece como requisito para a naturalização de estrangeiros a residência legal no território português durante cinco anos, combinado cumulativamente com outras obrigações. Esta é uma das vias recorrentes de aquisição da nacionalidade portuguesa por parte dos imigrantes. Outra forma de naturalização reside no poder discricionário que a lei concede ao Estado de atribuir a nacionalidade portuguesa a estrangeiros que tenham prestado, ou sejam chamados a prestar, serviços relevantes ao país. Foi por esta via que, aferida a relevância dos serviços desportivos a prestar ao país, Pichardo obteve a nacionalidade portuguesa.
Pode invocar-se o caráter discriminatório da lei, de uns terem que esperar cinco anos pela nacionalidade enquanto outros a obtém em poucos meses. Efetivamente não há igualdade de tratamento, porque a gestão da política migratória de volumosos contingentes de pessoas não segue os critérios de seletividade de pessoas específicas, consideradas relevantes. Todos os imigrantes são importantes para o país, contudo, se estes últimos tiverem que esperar cinco anos pela naturalização, desistirão a favor de outros países que os seduzirão com facilidades e recompensas, beneficiando dos seus relevantes desempenhos. Esta é uma realidade evidente nas políticas migratórias agressivas seguidas pelos Estados na captação de recursos humanos altamente qualificados.
A possibilidade de uma discriminação positiva de migrantes relevantes resulta do poder discricionário de o Estado designar quem considera como tal. Onde começa e acaba a relevância de alguém? Se for atleta, nas medalhas que pode obter para o país? Se for médico, nas cirurgias ou consultas que realizar? E se trabalhar indiferentemente nas obras ou na agricultura, ainda terá alguma relevância?
Atendendo às prestações desportivas de Pichardo, é óbvio que a sua rápida naturalização cumpre efeitos de representação desportiva, senão não se justificaria a célere atribuição da nacionalidade. Os atletas, seja pelos salários do seu trabalho, pelas possibilidades de evolução profissional ou por questões políticas ou pessoais, assumem a nacionalidade que mais lhe convém. Pichardo, ao que se sabe, desertou da seleção cubana de atletismo por desavenças com a respetiva federação, encontrando-se disponível para assumir a nacionalidade portuguesa e assim continuar a competir a nível internacional.
Nelson Évora, por outro lado, poderia assumir a nacionalidade costa-marfinense ou cabo-verdiana, mas optou pela nacionalidade portuguesa.
No atual contexto de liberalização do mercado de trabalho desportivo, a nacionalidade é uma condição fluida e subjetiva, ponderada e negociada. Por exemplo, as seleções marroquinas e argelinas de futebol, nos últimos mundiais, tinha inúmeros jogadores com dupla nacionalidade, muitos deles tendo representado internacionalmente nos escalões jovens os países de naturalização, mas que perante a possibilidade de jogarem um campeonato do mundo, optaram pela nacionalidade dos países do norte de África. Temos o caso de João Mário, internacional A pela seleção portuguesa, enquanto o seu irmão, Wilson Eduardo, depois de ter jogado por Portugal no escalão de sub-21 anos, representa atualmente Angola.
Importa considerar cada situação em particular e avaliar a seriedade dos processos. As federações desportivas internacionais consideram que estas mudanças de nacionalidade adulteram a genuinidade das representações nacionais, pelo que impõem limitações à possibilidade de os atletas competirem por outros países. No futebol, por exemplo, um jogador só poderá representar outra seleção se nunca tiver jogado como sénior na seleção do país de origem, e no atletismo é imposta uma paragem competitiva de três anos.
No contexto desta discussão, preocupante é saber que se a polémica sobre a condição de ser português sucede entre figuras públicas ocorre também entre pessoas anónimas, entre as quais a intensidade das discussões é mais virulenta e excludente, alimentada por discursos populistas. A condição da cidadania portuguesa não admite categorizações de primeira ou segunda. Aplica-se a todas as pessoas de nacionalidade originária ou adquirida, com a mesma dignidade e igualdade perante a lei.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico