“Sinto-me mais cidadão”: depois da rua, Carlos tem agora uma casa, trabalho, família

Tinha 14 quando ficou sem tecto, após a morte dos avós. Fez biscates, teve trabalhos, sobreviveu, mas acabava sempre por voltar à rua. Aos 54 anos, Carlos tem agora uma casa e um emprego.

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“Hoje, não me identifico como ex-sem-abrigo." Aos 54 anos, Carlos encontrou um trabalho e uma casa. Mas, nota, "Um sem-abrigo fica sempre com a marca" MATILDE FIESCHI

As jornadas diárias de trabalho de Carlos Franco Gonçalves, que completa 55 anos no dia 21 de Abril, tomam-lhe doze horas por dia, de domingo a quinta-feira, entre viagens casa-trabalho e o horário laboral. Ou bem mais, como no dia em que esta reportagem foi realizada no Parque Delfim Guimarães, diante da estação de comboios da Amadora, em mais uma semana marcada pela greve dos trabalhadores da CP, que lhe acrescentou um par de horas à sua já longa rotina casa-trabalho-casa.

Carlos enquadra-se num retrato muito comum entre a classe operária, particularmente em Lisboa e no Porto. Dias longuíssimos por força das deslocações entre casa e trabalho, salários exíguos, jornadas diárias de um desgaste acentuado. Mas Carlos ainda mantém a centelha do optimismo, como o orgulho de ter, desde há quatro anos, uma casa a que chamar lar, um emprego e a vontade de acompanhar o crescimento da neta e da filha, jovem adulta que emigrou para o Canadá.

Desde 17 de Outubro de 2022, Carlos está ao serviço da SUMA, empresa de recolha de resíduos e limpeza de espaços públicos que cuida da higiene urbana de cidades de norte a sul do país. É cantoneiro e garante, com os seus colegas de trabalho, que as ruas da Amadora permanecem limpas, desde a madrugada até ao final da tarde.

Nos dias em que trabalha, acorda em Entrecampos, em Lisboa, às cinco da manhã, para conseguir entrar ao serviço na Amadora às sete. Cumpre um horário de oito horas diárias, com uma para almoço de permeio, que lhe impõe um dia laboral de 12 horas: sai às quatro da tarde e, nos dias em que a rede de transportes públicos funciona regularmente, chega a casa por volta das cinco da tarde. É uma pequena grande maratona de 12 horas, entre acordar e chegar à casa a que pode chamar lar, após tantas décadas de uma dialéctica de fragilidade entre o cidadão e as ruas.

Momentos em que tudo muda

Carlos ficou desamparado com a morte dos avós, quando tinha 14 anos: “[Ali], tinha acabado de perder a minha vida”, desabafa o lisboeta nascido em 1968 na Maternidade Alfredo da Costa. Os avós maternos foram o seu grande pilar, e, de muitas formas, ainda o são. O pai morreu quando ainda era bebé, a mãe, que refez a vida sem o filho, voltou a casar e a constituir família, e tinha-o entregado aos avós maternos com meses de vida.

As memórias de infância de Carlos são felizes. Cresceu com os avós como referências, afectivas e sociais, no Bairro Padre Cruz, núcleo familiar a que se juntou uma tia, com problemas de saúde graves. Entretanto, o avô, que quando se reformou da polícia continuou a trabalhar em estufas e jardinagem, morreu de cancro quando Carlos tinha 11 anos. Já com a tia a viver na casa, morreu a avó, vitimada por uma doença coronária.

“A minha tia vivia connosco, mas, devido aos problemas de saúde, teve de ser internada”, recorda-se. “Ainda fui viver com uma prima, mas não resultou. Depois, fui para casa da minha mãe, que tinha casado e tido filhos, mas já não conseguia recuperar o que tinha perdido e acabei na rua”, diz.

Estes são aqueles “momentos em que tudo muda” na vida de Carlos, e ele teve-os em grandes doses. “Tornei-me sem-abrigo aos 14 anos porque a casa [dos avós] era da câmara e eu precisava de ter responsável até completar 18 anos, mas a minha tia teve de ser internada. Foi tudo por água abaixo”, explica.

“Aos 14 anos, tinha acabado de perder a minha vida”, insiste, sobre a morte dos avós. “Fechei-me muito com a morte deles e não conseguia pedir ajuda. Comecei a andar na rua, mas não conhecia nada da vida nas ruas”, prossegue. Com o tempo, aprendeu a seguir os valores que lhe passaram os avós: “Sempre me disseram: se precisares, pede. Se tiveres fome, pede.”

Não foi imediato, esse estender a mão a pedir ajuda. Demorou. Mas foi o factor decisivo para que hoje tenha uma vida com alguma dignidade. Antes, ainda adolescente, teve de penar, no início dos anos 1980.

“Comecei a viver nas ruas da zona de Benfica. Havia lá uma empresa de camionetas de mudanças e os donos deixavam-me a dormir dentro dos camiões, durante a noite”, recorda. Tempos diferentes, mas afinal não muito distantes destes que vivemos agora.

“A polícia ia lá muitas noites porque as pessoas dos prédios à volta os chamavam, não gostavam de ver um sem-abrigo a dormir nos camiões. Apesar de eu andar a fazer horas e só ir para os camiões muito tarde”, recorda-se.

Os agentes da polícia conheciam-no porque vivia naquelas ruas, mas também por serem frequentemente chamados pela vizinhança. “Quando recebiam as chamadas, já sabiam que era por minha causa. E foram sempre muito atenciosos comigo. ‘Olha, Carlos, vamos dar uma volta.’ Dava uma volta de carro com eles e levavam-me até à esquadra. ‘Toma um café, fica aqui meia hora e depois vais.’ E lá voltava aos camiões para dormir.”

Para sobreviver, precisava ainda de trabalhar informalmente na ajuda aos comerciantes dos mercados municipais. “Ia para conseguir alimentos: ajudava nos talhos para conseguir torresmos, chouriço, mortadela ou queijo; nas frutarias, para ter fruta; nas padarias, para o pão. Basicamente, todos os alimentos que não precisassem de fogão.”

Em quatro anos, Carlos desenvolveu uma série de doenças causadas pela dureza do clima e pela má-nutrição, com os invernos a provocarem-lhe muitas mazelas, sobressaindo as de ordem respiratória.

“Aos 18 anos, fui à inspecção [militar] e não fiquei porque estava muito fraco. Tinha problemas nos pulmões por causa da má alimentação e do frio e da chuva. Estive internado num sanatório, nas Portas de Benfica, durante 8 meses”, conta. Ficou com problemas crónicos, como asma, hoje anda com um inalador prescrito pela médica de família e reduziu significativamente a intensidade dos ataques. Mas levou tempo: “Havia alturas em que para subir uma rampa tinha de parar duas ou três vezes, porque não conseguia respirar.”

Este foi o primeiro embate em que “de um momento para o outro, tudo muda”, segundo Carlos. Depois, viveu nas ruas de forma intermitente durante largos anos.

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“Aos 14 anos e a viver na rua, não tinha cédula [de nascimento], nem boletim de vacinas, não tinha documentos”, diz. Ainda assim, foi conseguindo trabalhos, que lhe permitiam sair por alguns meses das ruas. MATILDE FIESCHI

Sem-abrigo, sem documentos

“Aos 14 anos e a viver na rua, não tinha cédula [de nascimento], nem boletim de vacinas, não tinha documentos. Perderam-se após a morte dos meus avós”, diz. Ainda assim, depois do internamento no sanatório, foi conseguindo trabalhos, que lhe permitiam sair por alguns meses das ruas, alugando quartos em diferentes zonas de Lisboa.

“Por volta dos 20, trabalhei numas bombas, na lavagem de carros e a meter combustível. Estive lá dois anos e tal, e deixei porque ficava agarrado [a trabalhar sem folgas] os sete dias e queria um aumento, porque raramente folgava. Acabei por sair, mas não estava no fundo de desemprego e não conhecia a Santa Casa da Misericórdia [SCML]. E não conseguia pedir ajuda”, vinca. “Fechei-me muito com a morte dos meus avós.”

“Depois das bombas, conheci a SCML, que me ajudou a tratar da saúde e do bilhete de identidade, para fazer currículo e arranjar contactos no mercado de trabalho. O doutor Paulo Cruz ainda hoje é o meu assistente social, na zona de Alvalade. Aliás, vou todos os meses à paróquia de Entrecampos buscar um cabaz de produtos básicos – arroz, massa, conservas, óleo, azeite, esse tipo de alimentos”, enumera. “Com as tragédias na Síria e na Turquia, o cabaz tem sido mais reduzido. Mas tem de se ajudar os outros, que também precisam, não é?”

“Voltei para a rua, mas, passados uns tempos, fui trabalhar para uma empresa que fazia a manutenção do aeroporto e de embaixadas. Trabalhavam muito com a decoração dos espaços para eventos”, continua. “Aluguei outra vez um quarto.” No entanto, “a empresa acabou” e Carlos estava de volta às ruas. “Na altura [anos 1980], não havia balneários públicos das juntas e das câmaras para se poder tomar banho, foram tempos complicados. No entanto, já havia outros apoios. “Fui para o fundo de desemprego”, diz.

À beira de completar 55 anos, Carlos Franco Gonçalves trabalha na limpeza urbana, na SUMA. MATILDE FIESCHI
À beira de completar 55 anos, Carlos Franco Gonçalves trabalha na limpeza urbana, na SUMA. MATILDE FIESCHI
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À beira de completar 55 anos, Carlos Franco Gonçalves trabalha na limpeza urbana, na SUMA. MATILDE FIESCHI

“Encontrei o que tinha perdido”

“Tenho isto na minha vida, de um momento para o outro tudo muda. No Campo de Santana, havia um autocarro de apoio aos sem-abrigo da Comunidade Vida e Paz. Ia lá com um amigo de rua e entrei na Quinta do Pinheiro. Estive lá um ano e 11 meses, depois fui viver seis meses para um apartamento dividido da Vida e Paz”, diz, explicando o início de uma relação fundamental na recuperação da dignidade. “Na Comunidade Vida e Paz, encontrei o que tinha perdido: a família. Outra família”, emociona-se.

“Fiquei para arranjar trabalho e, passadas duas semanas, conheci uma pessoa que distribuía as Páginas Amarelas para a ITT. Andei a distribuir listas telefónicas na Grande Lisboa, e em Novembro íamos para o Porto por três meses. Foi assim durante quatro anos. Depois, tirei carta de mota e comecei a trabalhar na distribuição de pizas em quase todas as empresas [do ramo]. Trabalhei nas Pousadas da Juventude, através do Fundo de Desemprego, como vigilante.”

Entre as estadas na rua e estadas sob tectos de diversas tipologias – albergado por instituições ou alugando quartos –, foi sempre fazendo pela vida. No início dos anos 1990, esteve em Espanha dois anos a trabalhar para um circo, na montagem da estrutura e do toldo da tenda e das jaulas dos animais.

“Na rua, circulava muita coisa, mas nunca toquei em álcool nem em drogas. Ainda hoje, não bebo álcool”, faz questão de sublinhar, voltando aos valores que trouxe dos 14 anos de vida em família com os avós.

Por fim, conseguiu uma casa. “Foi através de uma assistente da Vida e Paz, que nos conseguiu uma casa da Câmara, fez este ano quatro anos”, diz num plural que na realidade continua fragmentado.

Carlos formou a sua própria família, no final da década de 1990. “Conheci a minha companheira na AMI. Casámos depois do nascimento da minha filha, a Jéssica, que nasceu em 2000. Na altura, a minha esposa ficava em casa de irmãs, porque eu não tinha casa e dormia na Rua Castilho”, diz com uma ponta de orgulho – “a minha filhota”.

No entanto, o carrossel de altos e baixos continua: “Não tenho comigo a esposa, que ainda vive com irmãs, e a filhota, que foi com o companheiro para o Canadá. Já sou avô de uma netinha de dois anos. Como não percebo muito de tecnologias, peço ao meu vizinho e de vez em quando falo por WhatsApp com a filhota e a netinha.”

Outra instituição decisiva na vida de Carlos foi a Cais. “Entrei na Barata Salgueiro há 26 ou 27 anos. Arranjei outros trabalhos, mas em 2021 expliquei a minha situação e voltei a ser vendedor da Cais, voltando à venda de revistas na rua oito anos depois”, conta. “Estive quatro ou cinco meses, mas através dos protocolos com empresas, e como tinha trabalhado a recibo verde na higiene urbana da Junta de Freguesia das Avenidas Novas, fui chamado pela SUMA, para uma entrevista em Queluz.”

“A 17 de Outubro, comecei aqui, na Amadora, local que escolhi por ficar mais perto de casa”, declara. “Hoje, não me identifico como ex-sem-abrigo. Um sem-abrigo fica sempre com a marca, o sofrimento, e sei dar valor a isso. Mas sou mais comunicativo, e continua a ser sincero, e nunca mexi em nada [de ninguém]. Sinto-me mais estável e equilibrado, mais seguro”, conclui. “Sinto-me mais cidadão a poder fazer contas à minha vida.”

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