Nas Fallas de Valência, o fogo é o maior escultor
O leitor Tomás Reis andou pela cidade espanhola a ver as esculturas que o fogo engole, a cada ano, na noite de 19 de Março. Uma tradição que atrai milhares de turistas.
É no outro lado da península que, com o fogo, se diz adeus ao Inverno. Em Valência, espalham-se esculturas na cidade, dignas dos melhores ilustradores da Pixar, mas que o fogo acaba por engolir na noite de 19 de Março.
Explicando melhor: nos últimos dias do Inverno, Valência enche-se de centenas de conjuntos escultóricos, com personagens reais e imaginadas. Enquanto o trânsito se mantém fechado, preparam-se paellas, come-se, bebe-se e desfila-se. Entre bandas filarmónicas e trajes de seda, acorrem os júris das fallas, que premeiam as melhores esculturas.
É nesse momento que os construtores de fallas respiram de alívio: sem ventos que possam ter deitado as frágeis estruturas por terra, pode-se voltar a festejar.
Entretanto, aproxima-se a Primavera, e com o trânsito da cidade deixado em suspenso, urge chegar ao fim. Na noite de 19 de Março, todos os anos, todas as esculturas, uma a uma, são queimadas e reduzidas a cinzas. Tem então lugar a monumental tarefa de, na madrugada, limpar qualquer vestígio das fallas, e no dia 20, de manhã, a vida volta à normalidade.
Um fim tão dramático para esculturas tão coloridas e delicadas é difícil de acreditar, não fosse o fogo ditar o andamento das fallas, do início ao fim.
A partir do dia 1 de Março, começa a mascletá: um espectáculo de pirotecnia que tem lugar todos os dias, pela hora do almoço, ainda a cidade tenta manter o seu curso normal, mas já se montam as esculturas. Pessoas de toda a parte acorrem às principais praças, onde um fogo ensurdecedor faz tremer a terra, como num espectáculo de percussão.
Um pouco por toda a cidade, pessoas de todas as idades usam foguetes, queimando-os pelas ruas. Por todas as idades, entenda-se, é ver pais ensinando aos filhos como queimar com segurança. É um espectáculo que, noutras condições, seria motivo de apreensão; naquele ambiente controlado e alegre que se vive em Valência assume uma beleza invulgar, na espontaneidade de cada momento.
Qual será, então, a origem das fallas, quando o fogo dita a despedida do Inverno? A festa parece ter pouco a ver com um passado religioso, cristão ou pagão, mas sim com o engenho dos carpinteiros da cidade. Com a madeira que havia por queimar, no final do Inverno, começaram a fazer esculturas, clamando por mais atenção.
No que diz respeito ao valor artístico, o céu é o limite. O que começou por ser uma picardia entre diferentes zonas da cidade, transformou-se num modo de vida, com artistas que incansavelmente trabalham nas esculturas do ano seguinte, logo a seguir ao fogo.
As fallas de Valência acabam por ser um exemplo de colaboração e de competição saudável. Gente de várias artes e ofícios contribui para esculturas que representam uma comunidade, na qual deixam a marca dos tempos. Uma crítica, que os telemóveis hoje lêem nos códigos QR, não poupa ninguém, nem cantores nem presidentes.
Todas as fallas podem ser visitadas a partir da manhã de 16 de Março, quando se inicia a visita do júri, que no final do dia anuncia o vencedor. Este ano, ganhou a falla de Exposición-Micer Mascó, com um conjunto de criaturas que parece saída de Final Fantasy, onde nem falta uma figura de Putin endiabrado. Visitar a falla vencedora do prémio especial é uma forma de partir à descoberta.
A escolha de fallas que se segue é subjectiva, porque seria impossível referir todas aquelas que mereceram atenção. A do Convento Jerusalén-Matemático Marzal, por exemplo, representa o primeiro-ministro Pedro Sánchez num cenário de faroeste, rodeado por figuras reconhecíveis de vários partidos políticos espanhóis.
Talvez a maior concentração de fallas se encontre no bairro hype de Russafa. A de Cuba-Literato Azorín mostra a passagem do tempo, a vida e a morte, onde nem falta a rainha de Inglaterra saída de um caixão.
Seguindo para a praça da Câmara Municipal, ou Plaça de l'Ajuntament, encontrava-se o coração de Valência, ou Cardioversió valenciana, uma falla que, pela maior visibilidade da sua praça, ficou fora da competição. Esta falla, ao arder, começou por revelar as veias e as artérias, brilhando com o fogo. Até que as chamas começaram a tocar nas restantes figuras, e minutos bastaram para que tudo ficasse reduzido a cinzas.
Acabar as fallas é também saber lidar com o sentimento de perda: o fogo que tudo apagou também deu cores, ritmos e sons de momentos de grande alegria. Para o ano há mais.
Tomás Reis (texto e fotos)