Os padres não podem vir antes das crianças

A posição de proteção de abusadores é simplesmente incompreensível, totalmente contrária aos princípios que Cristo nos ensinou, inaceitável para quem pretende viver sob os Seus princípios.

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"Foi com Francisco e as suas vestes simples e brancas que me reaproximei da Igreja; aquela simples pomba fez-me sentir o mesmo que a minha avó e o seu testemunho silencioso" Reuters/KHALID AL-MOUSILY

Algumas das minhas mais felizes memórias de infância são de frias manhãs de inverno, numa aldeia do Alto Minho, em que acompanhava a minha avó à missa de domingo.

Lembro-me de sentir o rosto gelado, mas da mão quente da avó Ritinha, a segurar a minha, me aquecer por dentro. O mesmo calor aconchegante sentia quando, à noite, nos reuníamos à lareira para rezar o terço. Este sentimento de amor profundo e incondicional, a serenidade do colo da minha avó e o seu sorriso para com toda a gente misturaram-se em mim com a fé cristã e tornaram-se um só.

Aos 13 anos, decidi batizar-me contra a vontade do meu pai, e sem que a minha avó alguma vez tenha dito ou feito algo para me convencer a tal. Fui baptizada, fiz a primeira comunhão e fui crismada, depois de uma intensa e consciente preparação. Juntei-me a um grupo de jovens católicos que se reunia na Sé de Viana, com a reverenda complacência do padre Constantino, e cresci com eles, entre músicas à viola e campos de férias, em amizades que duram até hoje. Fui catequista e acompanhei grupos de jovens.

Os tempos de faculdade ditaram o meu afastamento geográfico da “paróquia”. A era de Bento XVI representou uma desilusão. Para mim, foi um tempo de retrocesso na História da Igreja. Mesmo assim, optei por educar as minhas filhas na fé católica. Foram baptizadas, frequentaram a catequese e fizeram os primeiros sacramentos. Mas foi com Francisco e as suas vestes simples e brancas que me reaproximei da Igreja. Aquela simples pomba fez-me sentir o mesmo que a minha avó e o seu testemunho silencioso. Hoje, não sou (ainda) uma católica praticante, mas cristã me assumo, e vou respondendo aos desafios que a minha Igreja me coloca.

Faço parte, enquanto leiga, de uma Comissão Diocesana que tem como competências estudar e promover a justiça e a paz no território onde vivo. No meu trabalho é o conhecimento científico que rege as minhas convicções e intervenções. No entanto, muitos dos princípios da minha fé ajudam-me a manter-me motivada e, devo reconhecer, orientam interesses e dão-me foco.

Há muitas coisas com as quais não concordo na Igreja, mesmo na de Francisco, mas acredito que com o tempo muitas coisas mudarão. Afinal, a Igreja é feita de homens (muito mais do que de mulheres) e os homens erram... As mulheres também errariam, mas os seus erros talvez fossem diferentes. Apesar destas discordâncias, acredito no poder mágico do Amor, professado por Jesus, esse amor que a minha avó Ritinha me ensinou com o seu abraço e sendo modelo de cristandade e de ser pessoa.

No entanto, como muitos outros católicos portugueses, nos últimos dias tenho-me debatido com fantasmas muito profundos.

A existência de abusos sexuais a crianças no seio da Igreja portuguesa, por mais chocante que seja, não me surpreendeu. Afinal, enquanto psicóloga que trabalha nesta área, sei que os abusos sexuais sobre crianças são transversais à sociedade, acontecem com mais frequência em contextos que deveriam ser seguros para a criança e são mais comummente perpetrados por pessoas que lhe são próximas, em quem a criança confia e que sobre ela exercem alguma autoridade.

Por outro lado, noutros países os resultados das Comissões de Inquérito criadas para investigar estes crimes já tinha demonstrado esta realidade. Porque havia de ser diferente em Portugal? Aplaudi a criação da Comissão de Inquérito e a escolha de personalidades, de credibilidade a toda a prova, escolhidas para dela fazerem parte. Apesar de alguns bispos terem dito coisas absurdas, a hierarquia da Igreja portuguesa fez o que tinha a fazer.

Vi a forma clara e frontal como a Comissão de Inquérito expôs esta trágica realidade, o respeito que demonstraram para com as vítimas e a maneira como, sem diminuir o problema, procuraram fazer a destrinça entre abusadores, que, por acaso, em alguns casos são padres, e a Igreja, sem, contudo, negarem a necessidade de a Igreja assumir as suas responsabilidades. Ouvi e, apesar do horror de muitos relatos, tive esperança que o destapar de todo este sofrimento servisse para alimentar a mudança necessária no seio da Igreja, à luz das palavras do Papa Francisco.

O que me tem revirado as tripas, deixado fisicamente doente, feito sentir incrédula e zangada, foi a posição tomada, nesta semana, pela hierarquia da Igreja (salvaguardando honrosas exceções). Assistir a tanta insensibilidade e hipocrisia, a tanta frieza e inconsciência, a tanta falta de empatia para com as vítimas, à imensa cegueira manifestada relativamente às consequências de manter tudo como está, fez esmorecer a chama da fé que a minha avó ajudou a acender no meu peito.

Enquanto presidente de uma associação que tem como missão promover e defender os direitos das crianças não posso ficar calada. Enquanto cidadã não posso ficar calada. Enquanto cristã e católica não posso ficar calada. Enquanto mãe que mandou as suas filhas à catequese, não posso ficar calada.

A posição negacionista e de proteção de abusadores é simplesmente incompreensível, totalmente contrária aos princípios que Cristo nos ensinou, inaceitável para quem pretende viver sob os Seus princípios. Estes bispos estão a ser coniventes e serão cúmplices se amanhã um destes padres, que se mantém em funções porque assim permitiram, abusar, mais uma vez, de uma criança. Esta Igreja que acolhe e protege abusadores de crianças e não percebe que o perdão dos abusos não pode vir antes da proteção às vítimas/sobreviventes. O perdão não pode vir antes do reconhecimento da culpa. O perdão não pode vir antes da justiça. Os padres não podem vir antes das crianças.

Que Deus lhes perdoe porque não sabem o que fazem! Eu não posso. Não agora. Não assim. Onde estão a pomba branca e o sorriso da minha avó agora?


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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