Há uns Verões, trabalhava como nadadora-salvadora. Estava bastantes vezes alocada à praia da Ribeira d’Ilhas, Ericeira, onde os banhistas são escassos e, em lugar deles, há surfistas sem fim. Nesses dias, além de assistir a surf de qualidade distraía-me a magicar planos para quando acabasse a licenciatura. Sonhava com um gap year em cheio, com viagens desde a Tanzânia ao Sudeste Asiático, partes a solo e partes com a minha melhor amiga, voluntariado, formações e turismo. Queria um pouco de tudo e fazia o mealheiro com essa expectativa. Um ano mais tarde, a pandemia veio e, como uma grande onda, arrastou e afundou todos os meus planos.
Um dia, voltava do mar e chegando ao posto de trabalho estava um homem sentado no meu lugar, ao lado do meu colega. Não era um homem qualquer, era um OG da praia, dos primeiros surfistas que todos os dias insistem em desafiar as ondas e continuam a fazê-lo passados mais de 30 anos. Costumávamos vê-lo a fazer stand up paddle com o seu capacete prateado, praticamente todas as manhãs. O capacete não é acessório, é antes necessário, uma vez que Ribeira d’Ilhas tem a onda perfeita devido ao seu fundo de rocha, a questão é que esse fundo não é fundo de todo.
O homem pediu para ficar ali, porque estava a filmar os surfistas que tinham vindo estagiar com ele durante aqueles dias. Enquanto filmava, fazia conversa e perguntou-me sobre as coisas mais simples e mais complexas da vida: quem sou eu? O que é que eu quero?
Entusiasmada, contei-lhe os meus planos pós-licenciatura. Ele ouviu interessado e no fim disse-me que era muito perigoso viajar para esses países sozinha, sendo rapariga, jovem e bonita. Fiquei perplexa. Tenho, ou tinha, a tendência para acreditar que, na sua maioria, as pessoas são boas e se confiarmos nelas vão dar o melhor de si. A minha mãe sempre me repreendeu por achar que havia algo de errado com o meu instinto de sobrevivência, já o meu pai sempre me congratulou por ter a experiência de encontrar pessoas espectaculares nas ocasiões mais inesperadas.
Sentado, a segurar a longa objectiva com uma mão e a câmara com a outra, contou-me a história real de duas raparigas que foram raptadas e colocadas numa rede de tráfico humano, quando decidiram viajar sozinhas. Pensei no assunto. Os contos infantis, como O Capuchinho Vermelho, são também contos de precaução, que avisam sobre os perigos exteriores, sobre os estranhos e o mundo incerto que por vezes nos espera quando crescemos. Este homem estava a contar-me uma versão do Capuchinho Vermelho adaptada a mim, à minha realidade e aos meus desejos.
Em vez de inspirar entusiasmo pela aventura, o objectivo talvez fosse incitar a precaução ou seria semear o medo? A única coisa que fez foi cultivar a raiva pela desigualdade de género. Será que se fosse o meu colega de trabalho o sonhador dos meus sonhos, a reacção teria sido a mesma? Porque é que concebemos que um homem viaje sozinho, mas se for uma mulher vem subjacente a preocupação imediata pela sua segurança.
Nesse mesmo ano, tinha viajado pela primeira vez sozinha, sem família ou amigos, para Boston, Massachusetts, EUA, para uma conferência de jovens mulheres. Por sorte, estou rodeada de pessoas que têm o mesmo impulso e oportunidade de poder partir à aventura, atrás do desconhecido, à descoberta. Curiosamente, conheço mais raparigas com esta natureza nómada do que rapazes. Talvez saibamos que não podemos ficar paradas num sítio a estagnar, talvez tenhamos medo de nunca sermos plenamente nós mesmas se não estivermos desprendidas daquilo que comummente nos define, talvez precisemos de sentir a tão fundamental independência.
Desde essa conversa que perdi conta à quantidade de vezes que já viajei sozinha. As marés trouxeram novos planos, novas pessoas e novos desafios. E ainda que sinta a necessidade de estar alerta, de proteger as minhas coisas e de me salvaguardar a mim mesma, tento ser a Capuchinho Vermelho que entra na floresta, mas que não vive com o medo constante do Lobo Mau.