A minha avó, sempre com o seu cuidado, a sua atenção, o seu primor, a sua exigência, pedia pelo menos um adeus antes de nos irmos embora. Antes que não voltássemos. Antes que fosse a última vez — e tem sido a última, ano após ano, de há 20 anos para cá, no fim das férias.
Por nos querer mais que tudo como à própria vida, vivida por inteiro a recusar dar-se por vencida, custe o que custar — e vá Deus saber de onde vêm estas forças e os mistérios escondidos, enterrados, sonegados, roubados pelo passado. Porque acima de tudo está o orgulho e a altivez. E porquê ter medo se nada se deve? Assim é a minha avó, mesmo quando se deve, mesmo quando deveu, sem nunca dar parte fraca.
Sempre me interroguei de onde vinha aquela força e qual o legado da sua geração, avó, o legado que agora se perde para sempre quando se sobreviveu a uma grande guerra. Quis incutir-nos a sobrevivência acima de tudo. A força. E, entretanto, uma ditadura. Mais força à força, alguém sempre à espreita — a morte sempre à espreita a querer saber, a querer morrer.
Mesmo quando não tem razão, mesmo se em falta ou em erro — e errar só por amor, por cuidado, nunca por querer. “Não me desrespeitem, soubessem vocês”, diria ela em pensamentos. E soubéssemos nós. Se não sabemos, a si o devemos.
Obrigado, avó. Mesmo quando não ouvimos por não querer ouvir, por teimosia surda, e, na surdez, batemos de cabeça com todas as nossas forças contra as paredes da vida. Mas a avó já lá estava à nossa espera num meio sorriso enquanto nos dizia: "Eu não te disse?".
Estava sempre à nossa espera assim como agora esperamos por quem não nos ouve. Já sabemos.
O que ninguém sabe é quando será a última vez. Apesar dos anos que teimam em passar rapidamente, não faltei uma vez à sua presença, avó, e repare por favor como me dirijo e sempre dirigi a si na terceira pessoa, o tal respeito, consideração, ou então a plena consciência do meu lugar na hierarquia familiar. Quem manda é a avó.
Claro que é a avó. Foi sempre a avó.
Mas desta vez foi diferente. Esta noite foi diferente, foi a avó quem, do seu quarto, me telefonou para comunicar. A avó veio cá abaixo até à rua para dizer adeus. Pelo seu próprio pé apesar de já não poder andar, apesar de já nem poder falar e muito menos telefonar do seu leito acamado.
Mesmo assim e apesar de tudo telefonou-me. Apesar de tudo vem mesmo cá abaixo para dizer adeus. Tem medo que seja a última vez e eu, que já sei a lengalenga, digo: “Ó avó” e “é sempre a última vez e não tarda estamos de volta”.
Por isso, e por cuidado, por carinho e atenção, não vá acontecer algo, aqui estou eu ao seu encontro já à porta do lar. Não estava longe, estava já aqui ao virar da esquina e ainda me cruzo com uma enfermeira e uma auxiliar e troco os bons dias enquanto subo ao seu andar mesmo a tempo de encontrar a dona Alzira lavada em lágrimas agarrada a si, pequena e encolhida, tão pequenina de encontro à porta, de encontro ao chão.
“Ela só lhe queria dizer adeus”, chora a dona Alzira.
Acordo cheio de calor. Era só um sonho — ou então um pesadelo — e não sei se quero escrever, não assim, avó.
Portanto faltam-me as palavras para explicar mais o porquê e se calhar é este orgulho, altivez e teimosia de quem não quer admitir quando se está errado mas aqui vai, avó: é que eu também não sei quando é a última vez. E se for a última vez, a verdade, avó, foi a de me ter dito mesmo adeus.