Quando o Estado falha a quem não podia falhar
Apesar de inscrita na lei desde 2015 a necessidade de o Estado privilegiar o acolhimento familiar, em detrimento do acolhimento residencial, Portugal continua a fazer exatamente o oposto.
Enquanto fui deputada, uma das realidades que mais me impressionou foi a do acolhimento familiar. À medida que ia estudando o tema e visitando as instituições, era com um profundo sentimento de injustiça que constatava a inaceitável negação de uma família, por parte do Estado, a milhares de crianças.
Esta é uma realidade grave e perversa, se considerarmos que em causa estão crianças especialmente vulneráveis, a quem a vida falhou e a quem o Estado não podia falhar. Mas falha. Falhava à época e continua a fazê-lo atualmente.
Apesar de inscrita na lei desde 2015 a necessidade de o Estado privilegiar o acolhimento familiar, em detrimento do acolhimento residencial, Portugal continua a fazer exatamente o oposto. A institucionalização continua a ser a regra: do número total de crianças e jovens em acolhimento em 2021, 96,5% encontravam-se em acolhimento residencial e 3,5% em famílias de acolhimento.
As razões para se dever privilegiar o acolhimento familiar são várias. Desde logo pelos positivos impactos que tem ao nível da vinculação afetiva, pela importância que tem no desempenho na escola, ideias que são facilmente resumidas numa frase que todos perceberão: cada criança deve ter direito a uma família. O desejável era que pudesse continuar no seu contexto natural de vida, mas não o sendo, a garantia de um ambiente familiar passa a ser responsabilidade do Estado. Falhada como se vê.
Fruto da importância e da sensibilidade do tema, foram várias as alterações legislativas protagonizadas pela Assembleia da República para procurar promover o acolhimento familiar. Em sede fiscal, no regime de justificação de faltas para assistência a estas crianças, bem como o reforço financeiro que está longe de pagar o tanto que é dado de coração a quem, por vicissitudes da vida, ficou privado de crescer com a sua família, foram várias as alterações à lei para promover este regime.
É, também por isso, perturbador olhar para os dados mais recentes que mostram que apenas uma em cada 13 crianças, entre os 0 e os 6 anos, se encontra em acolhimento familiar. No país todo, são apenas 224, num total de mais de seis mil crianças. Estará o Estado a promover devidamente esta medida, sensibilizando potenciais famílias interessadas? Estarão a ser privilegiados espaços para que os Centros de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental ou Contratos Locais de Desenvolvimento Social participem de modo mais consistente na intervenção ao nível do acolhimento familiar? Por que não replicar o bom exemplo que tem sido protagonizado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa nesta matéria?
Há, de facto, um sem número de perguntas que se impõem fazer a quem tem a responsabilidade de tutelar esta área tão sensível. Mas mais do que responder a cada uma delas, importaria responder às necessidades destas crianças. Como? Fazendo do acolhimento familiar uma prioridade, garantindo uma família a estas crianças.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990