É justo cancelar um país que não cumpre os Direitos Humanos?

Até que ponto é legítimo rotular toda uma nação com base na atitude e no comportamento de um governo que, na maioria das vezes, não foi escolhido pelos seus cidadãos?

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O exercício de calçar o sapato do outro ou tentar compreender o ponto de vista de alguém que não tem o mesmo contexto que nós é cada vez mais difícil Andriy Onufriyenko

A cultura de cancelamento tem vindo a crescer nos últimos tempos e cada vez mais se cancelam produtos, marcas, pessoas, e até países. Esta tendência tem por base o princípio de moralidade – se determinada entidade (seja ela uma pessoa, marca ou país) não apoia os valores morais que consideramos imprescindíveis, então não devemos seguir, comprar ou visitar o país em questão.

No que toca à experiência de viajar e conhecer novas culturas, a cultura de cancelamento está relacionada com a acção de determinados governos, que não só não cumprem os Direitos Humanos, como colocam os seus cidadãos sob um regime fanático e muitas vezes opressivo. Mas, a questão que se levanta é – até que ponto é justo cancelar um país por este não cumprir os Direitos Humanos? Até que ponto é legítimo rotular toda uma nação com base na atitude e no comportamento de um governo que, na maioria das vezes, não foi escolhido pelos seus cidadãos?

A era digital tem vindo a fortalecer as chamadas “bolhas de opinião”. Apesar da ideia romantizada de que o mundo está interligado, e que vivemos na era da globalização, não é bem assim. Na verdade, estamos cada vez mais perto de pessoas que partilham as mesmas opiniões que nós, e cada vez mais longe daquelas que pensam o contrário.

O exercício de calçar o sapato do outro ou tentar compreender o ponto de vista de alguém que não tem o mesmo contexto que nós é cada vez mais difícil. Se deixarmos de visitar um determinado país pelos mais variados motivos, (independentemente destes) estaremos a engrandecer estas bolhas. Num sentido mais extremo, estaremos a promover a criação de múltiplas “Coreias do Norte”, países cada vez mais fechados em si, onde o espaço para a liberdade de expressão não precisa de ser necessariamente limitado, mas sim circunscrito à sua bolha.

A certo ponto, na futura linha do tempo, teríamos países onde não vale a pena lutar por algo melhor, porque não se conhece melhor. Tal como hoje acontece, possivelmente, na Coreia do Norte.

O diálogo e a comunicação entre diferentes nações e culturas têm servido de ponte para o progresso e evolução. É ao tomarmos conhecimento de diferentes formas de vida que questionamos a nossa e nos permitimos mudar para algo que acreditamos ser melhor. Ora, se cancelarmos uma panóplia de países e culturas e simplesmente os deixarmos de visitar estaremos, seguramente, a perder enquanto espécie humana e tornar-nos-emos ainda mais egocêntricos e fechados sob nós mesmos.

É válido o argumento de que, ao viajar para a Rússia, o Irão ou a Coreia do Norte estamos a contribuir para a economia destes países. Mas também é verdade que não é a quantia que advém do turismo que sustenta estes regimes, já que isso são apenas migalhas no grande engenho que controla estas nações. Estaremos a separar o trigo do joio? Por entre os mais variados motivos que nos levam a querer cancelar um país, a grande maioria deles está relacionada com o seu governo.

Uma nação faz-se dos seus cidadãos, da sua cultura, história e tradições. Ao cancelar um país, estamos a colocar “tudo no mesmo saco” e a riscar a oportunidade de conhecer pessoas que, por advirem de um contexto tão diferente, nos podem acrescentar algo. Viajar é uma troca intercultural onde ganham todos – os que viajam, mas também os que recebem aqueles que viajam.

A experiência de viagem é altamente subjectiva e cada um de nós a vive de uma forma diferente. Mas julgo que há algo de transversal a todos os viajantes – viajar torna-nos pessoas melhores. Acima de tudo porque viajar nos deixa expostos. De um momento para o outro saltamos do conforto do nosso sofá, da companhia da nossa família e das jantaradas com amigos e damos por nós sentados numa berma de estrada, com uma mochila, completamente desamparados. Estamos entregues ao mundo.

À nossa frente desenha-se uma realidade completamente distinta, repleta de olhares indiscretos, cheiros confusos, e tradições que são para nós incompreensíveis. Viajar deixa-nos expostos à diferença e, forçosamente, obriga-nos a normalizá-la. Mais do que isso, viajar ensina-nos a observar sem ter necessariamente de julgar. Que não restem dúvidas de que viajar é uma das principais armas contra a intolerância e o egocentrismo.

Cancelar um país é a solução? O mundo não é um mapa a preto e branco e as fronteiras entre países não delimitam, nem nunca delimitaram, os bons e os maus. Neste preciso momento, enquanto no Irão se luta pelo “direito de não usar o véu islâmico”, no Norte da Índia, minorias islâmicas são perseguidas por nacionalistas e lutam pelo “direito a usar o véu”. O mundo é, muitas vezes, paradoxal e nele encontraremos sempre situações que nunca seremos capazes de compreender.

Quanto mais não seja, porque vimos de uma cultura ocidental que se caracteriza por um conjunto de ideias e valores que a outros povos pouco ou nada diz. E esse é um sapato que, por muito que viajemos e por muito flexíveis e tolerantes que sejamos, dificilmente conseguimos descalçar. Tirar a lente ocidental não é fácil, se não mesmo impossível, quando o tema são os Direitos Humanos. Sem mais saídas, viajar obriga-nos a aceitar a condição humana de “não compreender”, “não aceitar”, “não concordar”. E aceitar esta premissa, enquanto se continuam a explorar outras coordenadas e a vestir novas culturas é uma das grandes lições que podemos tirar desta arte que é viajar.

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