O dia em que um Nokia me fez chorar em Portugal
Estar num outro país nos dá a chance de nos sensibilizarmos com outros problemas e perceber quanto deixamos de sentir quando a realidade é dura demais.
Recentemente, num desses dias mais frios, tive de chegar cedinho à redação. Estava bem escuro ainda quando passei o bilhete para acessar a plataforma. Logo ao lado, um homem fez o mesmo gesto e, como eu, pôs-se a esperar o trem. Percebi pela roupa, manchada de tinta, que possivelmente tratava-se de um trabalhador da construção civil. Muito provavelmente um imigrante. Daqueles que moram mais longe e precisam estar ainda mais cedo no trabalho, todo santo dia. Havia outros como ele e pensei que pegar o comboio em outro horário era ter acesso a uma outra realidade de vida.
Para além do vento, cortou meu coração ver que aquelas mãos calejadas seguravam um pequenino celular Nokia. Daqueles que tinham o jogo da cobrinha na tela cinza esverdeada. Que enviavam SMS, essa relíquia que, assim como o disquete, os mais jovens nem sonham o que é. Um telemóvel pequeno demais para aquelas mãos, antigo demais para poder conectá-lo em vídeo com a família distante.
Não tive tempo para ver o que ia pela telinha do aparelho porque meu olho se encheu de lágrimas. Pode parecer estranho, mas ali vi resumida toda uma vida imigrante. A dureza de enfrentar um inverno como talvez não tivesse vivido. A dificuldade de fazer novos laços de convívio, talvez numa língua ainda desconhecida. A busca por uma vida melhor com trabalho duro, talvez totalmente diferente do que havia feito até ali.
Foi uma cena tocante, mais do que triste, que me fez resgatar uma sensibilidade em relação à vida dos outros que, claramente, muitas vezes suprimi no Brasil. Não é simples levar a vida adiante quando, no semáforo, altas horas da noite, uma criança vende balas. Ou quando, na esplanada de um restaurante, outra aproxima-se para pedir comida aos clientes, desafiando o olhar ameaçador de um segurança privado.
São tantas iniquidades juntas – falta de comida, de escola, de segurança, de respeito – que, se formos chorar uma por uma, não seria possível viver. Fazemos um tratamento de choque diário, como um médico preparado para receber feridos de guerra, ou uma dessensibilização, como um alérgico que toma doses ínfimas da substância que provoca violentas reações. E, ao mesmo tempo que nos tornamos mais aptos para viver em megalópoles problemáticas como São Paulo ou Rio de Janeiro, nos tornamos, como efeito colateral do tratamento, menos humanos.
Não que não haja sofrimento em Portugal. Há aqueles submetidos a condições análogas à escravidão em Odemira. Há os que se refugiam da exploração num bar em Beja. Há alojamentos superlotados que podem virar uma tragédia em caso de incêndio, como aconteceu na Mouraria, em Lisboa. Há uma mãe e um filho que, despejados, foram viver na praia de Matosinhos. E quem não terá para onde ir após o fechamento de uma área de campismo em Ericeira.
Custa-me, porém, pensar que, no Brasil, há 33 milhões de pessoas que não têm garantido o que comer, de acordo com dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19. São mais de três “portugais” famintos. Entre eles milhões de crianças que, por falta de condições dignas na primeira infância, terão dificuldade de desenvolver na plenitude suas capacidades, perpetuando a miséria.
Nesse contexto, foi um alento sentir os olhos marejar diante de uma cena prosaica como um celular antigo. E veio com o desejo de que possamos nos compadecer mais com todas as injustiças da desigualdade. Do pequeno Nokia na mão do imigrante em Portugal à fome das crianças nas ruas de uma grande cidade do Brasil.
A autora escreve em português do Brasil.