Às vezes calças umas botas e arriscas-te a entrar em terreno lamacento. É mais ou menos assim que me sinto ao escrever este texto. Patino entre, isto pode dar muito para o torto ou isto pode ser relevante para outros que, como eu, se arriscam a interpelar o mundo com pasmo e admiração. Sem mais demora, conto-vos a história que antecede os meus pensamentos.
Há uns tempos vi-me na incumbência de comprar um ramo de flores para oferecer à minha professora primária que, para além de ter sido uma educadora de excelência é também freira. A senhora que me atendeu questionou-me o destino do buquê, que flores queria, as cores, o formato. Respondi-lhe sem muitas certezas, talvez fosse melhor usar tons suaves, flores campestres, tudo isto enquanto desenhava na minha cabeça um ramo leve, com um toque de anjo embrulhado em afecto. Mas verbalmente resumi-lhe de uma forma curta e primariamente preconceituosa: é para uma freira. O que se oferece a uma freira? Atirei-lhe a pergunta com um sorrisinho espirituoso e a resposta regressou como uma flecha. Os olhos da senhora cerraram-se e fizeram de mim um alvo fácil e sem hipótese de fuga. Diz-me: “A minha filha também é freira e é muito feliz.”
Engoli em seco mas já que estava na lama, arrisquei algumas perguntas que satisfizessem a minha abelhudice. Aquela justificação de felicidade intrigou-me. A sua voz amoleceu como os lírios que manuseava para me falar sobre a Filipa. Vinte e nove anos, licenciatura em Gestão, mestrado concluído e doutoramento interrompido perante um chamamento que falou mais alto. Seguiu para Fátima, onde a família a visita sempre que lhes é permitido. Pelo meio houve namorados, Erasmus e Interrail, mas também o escutismo, voluntariado e catequese. Tudo dentro da dita “normalidade”, mas, segundo a mãe, nada a preenchia mais que o silêncio e o recolhimento que mais tarde se traduziu nesta entrega a Deus.
O que faz uma pessoa jovem e com formação negar todos os prazeres terrenos, dos mais simples aos mais complexos, para cumprir uma vocação? Será coragem ou fuga? Será a determinação para renunciar à vida comum em sociedade ou uma forma lúcida de fugir ao tanto que esta nos consome? Como reagiria perante uma filha que quer ingressar num convento ou um filho que expressa vontade em se tornar padre? A maioria de nós com perplexidade e um certo pesar.
Maria João Avillez, reputada jornalista portuguesa, confessou para uma daquelas revistas que se folheiam no cabeleireiro que havia perdido dois filhos para Deus: um por morte e uma rapariga que decidiu ser freira carmelita. Acrescentava que, embora a veja mais realizada do que nunca, isso não minora as suas saudades. A verdade é que hoje, e de forma estranha, uma jovem católica que abdica livremente do mundo para se enclausurar é algo intrigante, visto como um sacrifício incompreensível, desadequado e talvez desnecessário.
O certo é que ela só escolheu ser freira, não assaltou um banco, não fugiu ao fisco, não cometeu nenhum crime, nada que um pai se possa envergonhar ou entristecer. No entanto, colocamos dúvidas e espantamo-nos. Talvez porque na nossa noção de modernidade a defesa da diversidade e inclusão que tanto promovemos, e bem, tem dificuldade em aceitar os que simplesmente escolhem seguir convictamente sua fé.