Deixem o Auto da Barca do Inferno em paz

A divulgação descontextualizada desta prova só tem o intuito de descredibilizar a escola pública, coarctando a liberdade pedagógica dos professores e criando uma polémica que não tem razão de existir.

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Circula uma notícia sensacionalista, em vários órgãos da comunicação social, que dá conta da partilha de um teste de Português do 9.º ano no qual os alunos de uma escola de Évora foram desafiados a “colocar-se no papel de uma prostituta”.

Vejamos a formulação do exercício de escrita ipsis verbis: “Coloca-te na pele de uma jovem mulher que caiu numa rede de prostituição. Escreve, com cuidado, um texto (150-180 palavras) em que reveles as circunstâncias que conduziram ao crime e o drama vivido pela vítima, através dos seus pensamentos”. Ora, o enunciado insta os alunos a pensar com base na personagem Brísida Vaz, numa obra em que o tema da sexualidade é transversal.

Muitas das pessoas que comentam a sua indignação nas redes sociais deveriam, antes de opinar e transpor este assunto para o campo ideológico, ler o Auto da Barca do Inferno, uma obra que retrata os vícios morais da sociedade portuguesa do século XVI.

O Auto critica a elite económica corrupta, a degenerescência do clero, os procuradores que davam sentenças a troco de subornos e os usurários (onzeneiros) que emprestavam dinheiro a juros proibitivos. Alguma semelhança com o presente é pura especulação.

Além disso, o dramaturgo criticava os agenciadores da prostituição, através da Alcoviteira, condenada ao Inferno, que agenciava jovens para a prostituição. A personagem vicentina assume-se como a angariadora e supervisora de um lupanar imenso – “criava as meninas / para os cónegos da sé” –, com todos os ingredientes necessários ao prazer sexual – “seiscentos virgos postiços / e três arcas de feitiços / que não podem mais levar / (…) / a mor carrega que é / essas moças que vendia. / Daquesta mercadoria / trago-a eu muito, bofé”. Isto é, o seu pecado capital é a exploração das escravas sexuais, o lenocínio.

A obra é actual pois todos estes problemas continuam a existir no Portugal do século XXI. Não deveria esquecer-se que estamos perante um género do teatro medieval – a moralidade –, que se caracteriza pela oposição entre o Bem e o Mal e pela intenção didáctica que daí deriva. Sem essa coordenada quase tudo se perde em termos de sentido. O Auto é leccionado no 9.º ano, conforme as orientações curriculares, para levar os jovens a reflectir sobre o tipo de sociedade que não devem ajudar a construir e para saber distinguir o Bem do Mal, ao contrário do que os populistas nos transmitem.

E no que às notícias diz respeito, importa distinguir o trigo do joio. A divulgação descontextualizada desta prova só tem o intuito de descredibilizar a escola pública, coarctando a liberdade pedagógica dos professores e criando uma polémica que não tem razão de existir.

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