O povo que não sabe governar o próprio país
O ataque xenófobo sofrido por um casal de amigos brasileiros num café lisboeta e o estado da política – brasileira e portuguesa
— Os brasileiros não sabem governar o próprio país e vêm aqui gozar com a gente. Cá no nosso país. Aquilo está quase uma guerra civil, deviam voltar para lá.
Foi assim, aos berros por sobre o balcão, que um casal de amigos brasileiros encerrou o pequeno-almoço numa cafeteria da Avenida da República, em Lisboa.
A situação começou com indiretas ríspidas, quando ela ouviu os dois conversando em PT-BR — diferente de PT-PT, como bem lembra o asterisco que vai ao fim deste texto. Escalou para os gritos quando meu amigo foi ao caixa para pagar. E só cessou quando minha amiga, depois de várias advertências e já exaltada, ameaçou ligar para a polícia. Contrariada, a agressora, uma senhora, saiu do estabelecimento pisando duro.
Meus amigos ficaram a lidar com o gosto mais amargo daquele café: o fato de que os donos do lugar nada fizeram diante da cena. A pior parte não foram os gritos, mas a complacência com a hostilidade gratuita e preconceituosa. É o tipo da situação que nos faz questionar: se fossem outros os personagens, teria a história o mesmo desfecho?
Imaginemos que um brasileiro bem vestido interrompesse um casal de portugueses aos gritos:
— Vocês não sabem governar o próprio país e foram lá gozar com a gente! Saquearam as nossas riquezas e tivemos até de receber a Família Real fugitiva. Vim cá só para reaver o ouro que nos levaram!
Certamente soaria descabida tal cobrança depois de tantos séculos — ainda mais considerando que boa parte dos brasileiros, eu inclusive, são descendentes de portugueses. Mas não deixaria de ser um teste para a isonomia dos donos da cafeteria em questão. Ficariam catatônicos ou seria o imigrante insolente encaminhado ao SEF, essa fábrica de ilegais por sua ineficiência?
Não saberemos. Mas sabemos que, se os proprietários pensarem como a senhora, muitos estabelecimentos terão de fechar por falta de mão de obra. Os imigrantes, segundo dados do Observatório das Migrações, já eram 5,2% da população do país em 2021. E os brasileiros são a maior comunidade (36,9% do total). Ao PÚBLICO, o sociólogo Pedro Góis afirmou que, sem os estrangeiros, “o país não sobrevive”. Os imigrantes já contribuem com mais do que recebem do Estado português.
Convido vocês, leitores, ao desafio de entrar num estabelecimento comercial nas grandes cidades portuguesas sem encontrar um brasileiro a servir. Desde que cheguei a Portugal, tenho a sensação de que muitos brasileiros, grande parte trabalhadores menos qualificados, são discriminados cá — do mesmo modo como a população negra é até hoje discriminada no Brasil. Com o agravante, para o demérito dos brasileiros, de que, por lá, somos todos de um mesmo país e falamos a mesmíssima língua.
Reduzir os abismos sociais, econômicos e culturais entre portugueses e brasileiros, e entre os próprios brasileiros, só é possível com políticas de inclusão. As cotas para negros nas universidades públicas brasileiras foram um primeiro grande passo. Mais recentemente, empresas assumiram parte da responsabilidade ao incentivar a contratação de pessoas negras. O Magalu, uma das maiores redes de retalho brasileiras, foi alvo de ataques ao anunciar um programa específico para esses jovens talentos.
Ainda temos muito a progredir nas políticas para garantir os direitos dos povos originários do Brasil. São eles os que mais têm razão para reclamar de invasões e discriminações. A maior parte da população foi dizimada ao longo de séculos, numa herança maldita compartilhada entre portugueses e brasileiros, e continua a sê-lo, de fome, de veneno e de descaso. Eles não migraram a lugar nenhum e, mesmo assim, não têm direito a uma vida digna.
A crise humanitária dos Yanomami é resultado da decisão dos brasileiros de eleger um governo publicamente comprometido com o garimpo e a extração de madeira ilegais. Um governo contrário à existência de reservas indígenas e negligente com políticas de saúde. Um governo que, por omissão e por método, levou à morte crianças e adultos por desnutrição em Roraima.
Diante desse cenário, assumo uma única concordância com a senhora da cafeteria da Avenida da República. Nós, brasileiros, não sabemos governar nosso país. Elegemos em 2018 um líder populista de extrema-direita que prega o ódio, já foi acusado diversas vezes de racismo e agora é suspeito de genocídio. É assustador e desanimador ver ecos, ainda que minoritários, do mesmo discurso deste lado do Atlântico. Espero, mesmo, que os portugueses nos mostrem que sabem fazer melhor.
*A autora escreve em português do Brasil.