O apartheid urbano

Podemos convocar a palavra apartheid quando a especulação e a desregulação do mercado imobiliário se traduz numa grave crise no acesso à habitação

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Lisboa Miguel Manso

Recentemente num jantar entre amigos surgiu a palavra apartheid para expressar a segregação existente entre a comunidade branca e a comunidade negra na região de Lisboa. A este propósito, reflectiu-se sobre a "gravidade" da palavra apartheid e a legitimidade de a utilizar para expressar esta ideia.

Para alguns, esta apropriação significaria um esvaziamento do seu potencial incriminatório, numa clara referência ao regime de segregação racial que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1993. Para outros, esta desigualdade apesar de não ser consagrada pela Constituição está presente no território metropolitano: os lugares, empregos, quotidianos e oportunidades de grande parte dos portugueses afro-descendentes são iminentemente mais frágeis, contingentes e invisíveis. Interessou-me ampliar este exercício, partindo do princípio de que “a aparência cega e as palavras revelam”, como refere Oscar Wilde.

Para além do apartheid étnico-racial, avolumam-se outras formas de marginalização na cidade, na sociedade e no território do país. Podemos convocar a palavra apartheid quando a especulação e a desregulação do mercado imobiliário se traduz numa grave crise no acesso à habitação. Podemos convocar a palavra apartheid quando os beneficiários de vistos gold e os nómadas digitais gozam de isenções de impostos ao mesmo tempo que os residentes locais são "despejados" ou lutam para pagar as contas de supermercado e a renda da casa.

Podemos convocar a palavra apartheid quando os imigrantes dormem em tendas debaixo do fumo dos viadutos ou em camaratas sem condições nos campos agrícolas onde trabalham. Podemos convocar a palavra apartheid quando a inflação galopa sobre as condições de vida, os salários não crescem e as condições de empregabilidade se tornam cada vez mais incertas. Podemos convocar a palavra apartheid quando os profissionais de educação são precarizados e obrigados a percorrer distâncias maiores do que as do pensamento para ensinar.

Podemos convocar a palavra apartheid quando o sistema de saúde é limitado no seu funcionamento, prejudicando o bem-estar das populações. Podemos convocar a palavra apartheid, quando o desenvolvimento não chega às zonas rurais do interior, beneficiando exclusivamente as cidades, os turistas e os seus cocktails. Podemos falar de apartheid quando ouvimos falar de alegados esquemas e indemnizações milionárias, ao mesmo tempo que se pedem sacrifícios à população em nome da guerra, do controlo da dívida, ou de outro argumento qualquer.

Podemos convocar a palavra apartheid, em suma, quando ocorre a alienação entre o sistema político-económico e os cidadãos que este deve servir. Como diz Sérgio Godinho, "só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação". Sem estes pilares da democracia e da justiça social, grande parte da população será condenada à exclusão, mesmo que a "aparente" capa da Constituição consagre todos os direitos.

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