“Isso é sustentável?” Sustentabilidade e colecções de roupa
Não há problema nenhum em comprar. Como não há problema algum em comprar fast fashion. O problema é comprar demais e descartar.
Na mesma semana, por duas vezes, perguntaram-me se o que tinha vestido era sustentável. Era uma peça de roupa nova, é um facto; foi comprada, é outro facto; o tecido é fibra, último facto. Será sustentável? O que faz a roupa ser sustentável? Os materiais com que é produzida, o processo de produção ou a utilização que lhe damos?
O que é a sustentabilidade?
Com a Eunice Maia, da Maria Granel, aprendi que sustentável é usar até ao limite da utilização, é reutilizar e não desperdiçar, o que é contrário à ideia de comprar por comprar.
Ao longo do tempo também percebi que, muito provavelmente, já temos toda a roupa de que precisamos, mesmo quando pensamos que não.
Isto fez apaixonar-me pela ideia de guarda-roupa e tudo o que representa, razão pela qual comecei a analisar o meu próprio guarda-roupa para, agora, estudar o guarda-roupa das outras pessoas.
Quero compreender as relações entre a roupa que usamos, a moda e a sociedade. Acredito que a moda tem um enorme potencial para contribuir para a mudança social. Desde os primórdios daquilo que consideramos ser a moda, a roupa tem sido observada como uma forma de expressão: estatuto social, identidade, personalidade.
Do ponto de vista sociológico, a moda pode ser entendida como parte da cultura de consumo, sendo igualmente uma linguagem com uma estrutura semiótica: qualquer pessoa pode fazer uma leitura sobre aquilo que vestimos porque, independentemente de qualquer abordagem, mais ou menos teórica, a roupa ajuda a comunicar a nossa identidade social.
Ao longo dos últimos dez anos, as campanhas por uma moda mais sustentável trouxeram novos temas à agenda mediática, colocaram diferentes abordagens em cima da mesa e escrutinaram a indústria da moda. Aumentaram, também, o nosso conhecimento sobre uma das indústrias mais poluentes, e com maior impacte no planeta.
Se considerarmos que a palavra sustentabilidade se refere a um sistema com condições para se manter ou conservar, é fácil perceber que, independentemente do contexto em que usemos a palavra, dirá sempre respeito a uma integração social, económica e ambiental.
No caso da indústria da moda, é sobre essa integração, recorrendo a métodos com o menor impacte ambiental possível respeitando valores sociais e económicos. Seja sustentável ou eco, o objectivo é a igualdade e justiça social, direitos dos animais e integridade ambiental. A preocupação é sempre a mesma, no entanto, há diferentes designações para a sustentabilidade na moda.
A moda ética, por exemplo, do inglês fair fashion, assenta na preocupação com aspectos sócioculturais e ambientais; a slow fashion, desenvolvida a partir do movimento slow, é mais conceptual, envolve questões culturais, diversidade e igualdade, procurando também proteger os recursos naturais. Traduz-se em diferentes formas, que podem incluir práticas e modelos, como as trocas ou a circularidade na moda.
Além dos nomes, as práticas, nomeadamente o upcycling (reutilizar materiais/evitar o descarte), o mending (reparação das peças de roupa) ou estilos de vida, como a opção pelas trocas ou segunda mão.
A quem interessa a roupa que vestimos?
Em teoria, a ninguém; apenas a cada um de nós. Na realidade, a roupa comunica não apenas a nossa personalidade, constrói a nossa identidade e define quem somos, a que grupo pertencemos, incluindo as nossas opções políticas ou ideológicas. É por isso que a moda não é superficial e a roupa que vestimos irrelevante.
A moda apresenta-nos ao mundo. O que vestimos introduz-nos antes sequer, de podermos falar. Assim sendo, como pode algo tão importante ser considerado menos do que qualquer outro aspecto das nossas vidas, bem como da nossa identidade individual e colectiva?
As nossas escolhas, aquilo que é considerado o nosso estilo, cria a primeira impressão e vai influenciar o olhar do outro, correspondendo — ou quebrando — normas sociais, papéis sociais, estereótipos, estigma e preconceito.
Há uns anos, questionaram a roupa que trazia vestida e, garanto, estava dentro das normas e papéis sociais, mas correspondia, ligeiramente, a um certo estereótipo. Ou talvez rebeldia, já não sei. Respondi de forma simpática, mas provocatória, e surpreendi-me com a contra-resposta, demonstrando um grau de preconceito que ultrapassava aquilo que trazia vestido e atentava contra a minha capacidade enquanto profissional.
É neste mundo que nos movemos e, por isso, comunicar quem somos através do que vestimos é o primeiro passo para criarmos impacto. A roupa é, portanto, uma ferramenta de comunicação importante para comunicar algo que a sociedade teme: o carisma.
O carisma (também) faz parte do nosso guarda-roupa
Carisma talvez seja o nome do meio de Orsola de Castro, que entrevistei recentemente sobre o seu guarda-roupa. Orsola é fashion designer e autora de livros, responsável pela Esthetica, um showcase de moda ética. Foi co-fundadora e directora criativa da Fashion Revolution e tem um guarda-roupa invejável, repleto de preciosidades porque, simplesmente, nunca se desfaz da roupa, guardando todas as peças que possui, as quais foi herdando ou recebendo, sem nunca precisar comprar. Orsola não compra.
A nossa conversa começou exactamente por aí, com Orsola confessando o seu mais recente crime, ao comprar um pijama numa marca de fast fashion. Viajou e encontrou-se sem pijama. Esquecimento. Decidiu resolver o seu problema comprando um, assumindo essa opção sem problema. Porque não há problema nenhum em comprar. Como não há problema algum em comprar fast fashion. O problema é comprar demais e descartar. E Orsola não descarta. Nada.
Assume-se como clothes keeper ou seja, alguém que colecciona roupa. Tem as mesmas roupas desde a adolescência e peças que eram da sua bisavó. Ao longo da vida foi construindo uma coleção sem fazer compras, aceitando a roupa dos outros, guardando e acumulando.
As poucas compras que faz resumem-se a um impulso apaixonado, por regra em segunda mão, ou enquanto mentora de jovens designers, para os apoiar. De resto, a ideia de ir às compras para acrescentar algo ao seu guarda-roupa não faz parte da sua vida e, por isso, defende que devemos ser cuidadosos quando decidimos comprar coisas novas.
A nossa identidade pode ser construída — e reconstruída — com o que já temos, sem adicionar algo novo, afirma. O estilo é muito pessoal. Cada um de nós é único e, por isso, Orsola diz ser difícil criar regras ou dar sugestões a outros sobre estilo.
Há uma certa tendência para pensarmos que todas as pessoas são fashionistas, afirmou. Na maior parte dos casos, as pessoas não pensam na questão da identidade. Orsola explica que, para algumas pessoas, não é óbvio, que a roupa as defina. Para elas, a roupa é apenas funcional. E sim, ao contrário do que se possa pensar, Orsola de Castro tem peças de roupa made in fast fashion. Foi designer para marcas fast fashion e guardou as peças que criou.
Defende que, ao contrário do que pensamos, as marcas mais caras de fast fashion não são mal produzidas. São produzidas de forma muito simples e muitas das marcas mais caras são produzidas da mesma forma, com o mesmo nível de qualidade.
Mais do que descartar, Orsola acredita que tudo pode ser guardado, reutilizado, reparado. É é assim que lida com a roupa e a moda, pensando e promovendo a longevidade das peças, como explica no seu livro Loved Clothes Last, também disponível em português.
Com um guarda-roupa que ocupa um quarto, Orsola de Castro admite ter uma relação muito intensa com a roupa, sendo incapaz de pensar num guarda roupa cápsula ou escolher uma peça preferida. Foi através da roupa que começou a sua carreira e é através da roupa que se sem definido enquanto pessoa e profissional: apaixonadamente coleccionadora.