O alarme da pobreza infantil e o futuro com a Europa
A Europa deu a oportunidade a Portugal de proceder a uma verdadeira revolução cultural no modo de fazer acção social.
O discurso de Mário Soares por ocasião da assinatura do Tratado de Adesão às Comunidades Europeias (Lisboa, 12 Junho 1985) é iluminado pela ideia de um futuro de progresso e de modernidade para Portugal, consequência natural da democracia pluralista instalada com a revolução de Abril. No discurso, Soares convoca habilmente as jovens gerações, “principais beneficiárias da integração europeia”, obreiras privilegiadas nesse admirável mundo novo que se afigura próspero e coroado de justiça social. Desde então, a Europa tem representado para sucessivas gerações de jovens portugueses uma fonte de oportunidades pelos contributos económicos, educacionais, sociais e culturais que representa.
Desde a adesão à então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, é inegável a melhoria global das condições de vida dos portugueses, particularmente dos grupos mais vulneráveis. Para tal contribuíram, entre outros, os Programas Europeus de Combate à Pobreza, as transferências dos Fundos Estruturais da União Europeia e a criação do Mercado Social de Emprego.
Para os diferentes grupos profissionais que lidam com os grupos mais vulneráveis, a Europa tem representado um auxiliar formativo importantíssimo. Termos como “mainstreaming”, “parceria”, “efeito multiplicador” e “participação” foram progressivamente incorporados nos discursos e nas práticas, revolucionando simultaneamente o modo como se pensam os projectos de intervenção e o modo como se olham as pessoas, beneficiárias últimas desses mesmos projectos.
A Europa deu também a oportunidade a Portugal de proceder a uma verdadeira revolução cultural no modo de fazer acção social: deslocou o modo de combater a pobreza de um paradigma baseado eminentemente na assistência imediatista e caritativa dos cidadãos para um patamar superior de acção social, centrada nos direitos humanos.
Contudo, 38 anos passados há muito por cumprir, designadamente quando se pensa na acção junto dos grupos etários mais jovens, e em particular quando falamos dos grupos de crianças mais vulneráveis às situações de pobreza e de exclusão, uma área em que em muitos casos ainda imperam modelos de intervenção anacrónicos.
Os relatórios anuais apresentados pela rede europeia Eurochild propõem-se analisar a situação dos direitos da criança nos diferentes países europeus partindo dos relatórios e recomendações produzidas no contexto do chamado processo do Semestre Europeu. Estes relatórios analisam também o grau da participação da sociedade civil nos processos que envolvem a concepção e a aplicação dos Planos de Acção Nacionais da Garantia para a Infância (outra iniciativa europeia) e o modo como o investimento nos direitos da criança via fundos europeus se vai processando. Aqui encontramos uma ferramenta auxiliar para conhecer o que se tem feito em países como Portugal no que à promoção dos direitos da criança no quadro da Europa diz respeito.
Foi lançado recentemente em Bruxelas o último relatório: “(In)visible Children – Eurochild 2022 Report on Children in Need Across Europe”, no qual tive o privilégio de participar, conjuntamente com as colegas portuguesas do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e da Fundação da Nossa Senhora do Bom Sucesso (FNSBS).
Após a leitura do relatório parece claro que, embora toda a documentação produzida pelos países no âmbito do Semestre Europeu ganhasse com incluir reflexões em torno das crianças, países como Portugal, ao contrário da Áustria, da República Checa, da Alemanha, da Hungria, da Itália, da Lituânia, da Polónia, da Roménia e da Eslováquia, não as incluíram. É também importante salientar que à data da elaboração deste relatório, 12 estados-membros da União, entre os quais se inclui Portugal, ainda não tinham apresentado os seus planos de acção nacionais para a Garantia para a Infância, que deveriam ter sido apresentados até Março de 2022.
Estas duas constatações são particularmente preocupantes por os gastos no âmbito do Fundo Social Europeu (FSE+) deverem responder às recomendações e análises do país fornecidas no âmbito do processo do Semestre Europeu. O FSE + permite, entre outros, grandes investimentos em programas que apoiam os direitos da criança e a luta contra a pobreza infantil num contexto actual, em que, lembra o relatório, “desde 2020 a pandemia de covid-19 acentuou as desigualdades e num contexto em que o custo de vida e a crise energética irá empurrar ainda mais crianças para a pobreza em 2023. Viver em pobreza na infância terá um impacto negativo na saúde, educação e no emprego no futuro”.
Portugal representa há longo tempo um caso particularmente sensível nestas matérias, com a agravante de em 2021 a pobreza das crianças ter aumentado para 22,9%. É por isso essencial que o Governo garanta com clareza, por todos os meios e com a maior celeridade possível, que a prevenção e o combate à pobreza infantil e à exclusão social são uma prioridade nacional. Um outro ponto que se sublinha é a situação do sistema nacional de acolhimento de crianças e jovens. O país persiste num modelo centrado no acolhimento institucional e pouco centrado no acolhimento familiar. A ausência de uma estratégia clara para a desinstitucionalização de crianças e jovens é preocupante.
As recomendações globais da Eurochild e dos seus membros aos governos dos estados europeus relativamente às várias situações nacionais são oito. Aqui se reproduzem parcialmente:
- Promover o acesso à educação pré-escolar e os cuidados na primeira infância, sobretudo às crianças em maior risco de pobreza e de exclusão social, particularmente crianças ciganas ou crianças de origem migrante. É necessário garantir a qualidade da mão-de-obra para garantir a qualidade excepcional dos cuidados. É por isso fundamental ampliar a oferta pública destes serviços e tornar as actividades profissionais nos sectores sociais e educativos mais atraentes.
- Investir de modo a oferecer acesso gratuito e igualitário de serviços de saúde, designadamente na área da saúde mental. Lançar programas de alimentação gratuita nas escolas e melhorar as iniciativas de acesso à habitação social e a medidas de protecção social.
- Proteger os direitos das crianças online e offline. Se por um lado a Internet pode ser um excelente espaço para as crianças aprenderem, por outro lado pode representar perigo por carecer ainda das salvaguardas existentes offline.
- Implementar a Garantia para a Infância a nível nacional tomando em consideração os saberes e experiências das crianças e de pessoas e organizações da sociedade civil.
- Reconhecer as crianças como agentes de mudança por direito próprio. É fundamental que sejam envolvidas na implementação e na avaliação dos planos de acção nacionais da Garantia para a Infância.
- Superar as dificuldades de acesso aos fundos europeus. As pressões de tempo, os encargos administrativos e as responsabilidades significativas podem impossibilitar o seu uso como ferramenta contra a pobreza e o seu uso por organizações de pequena e média dimensão. A ausência de participação dos diferentes actores na concepção, monitorização e avaliação dos mecanismos de financiamento também deve ser ultrapassada.
- A Europa progrediu na promoção da desinstitucionalização, excepto em países como Portugal. As garantias para que as crianças entregues aos sistemas de acolhimento vivam num ambiente familiar e comunitário saudável parece ser ainda uma miragem. É também necessário rever e promover reformas no apoio prestado aos jovens que abandonam o sistema de acolhimento com vista à sua autonomização. A prevenção da separação familiar e a protecção e apoio a menores desacompanhados também deve ser uma prioridade.
- Colocar os Direitos da Criança no centro do Ciclo do Semestre Europeu de modo a que todos os países convirjam para padrões mais aceitáveis ao nível da protecção das crianças e que implementem reformas que garantam o seu bem-estar.
No ano em que se assinalam 38 anos sobre a assinatura do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias falta ainda cumprir muito do Portugal prometido pelos pais da adesão à então CEE. Cidadãos, crianças e jovens, técnicos sentem hoje que há ainda um longo caminho, sobretudo cultural, a percorrer, para que o país consiga acelerar processos e torná-los mais eficazes, designadamente nos mecanismos de combate à pobreza infantil e na promoção do bem-estar das crianças. Não queremos regressar a 1985. É por isso urgente antever o futuro.