Quem quer ver o centro de Lisboa na lista de Património Mundial da UNESCO? A ideia já tem décadas, porque há poucas dúvidas sobre a marca de um terramoto que abalou o mundo ocidental e lançou uma nova forma de fazer cidade. Lisboa racional, anti-sísmica, sairia renovada para a Idade Moderna, como um exemplo para tantas outras cidades.
Uma caminhada entre o Rossio e a Praça do Comércio deixa ver ruas que se estendem ao rio e às colinas, entre o Chiado e o castelo, num encontro sensível e consciente com a cidade que já existia antes do terramoto. Mas a vida mudou, e nem todos os lisboetas parecem confortáveis com isso.
Até 2011, era a ausência de Plano Pormenor de Salvaguarda a travar a aprovação de novos projectos, e muitos edifícios degradaram-se. Depois cresceu o turismo, de braços dados com uma vaga de reabilitação urbana. As fachadas foram lavadas, mas foi difícil de acompanhar todas as obras: nunca, desde o terramoto, terão sido derrubadas tantas paredes. Vieram os fachadismos, em que só as fachadas eram mantidas, inevitável em alguns casos, mas noutras situações um sintoma do cómodo esquecimento do legado pombalino.
Entretanto, mudou o comércio, criou-se a rede de Lojas Com História, para preservar os espaços mais carismáticos, mas a cidade mudou muito depressa. Chegaram as dúvidas: que cidade falta proteger? Pensou-se em incluir a Baixa numa zona mais vasta, que incluísse miradouros sobre o Tejo, numa relação com as colinas, sem a qual a Baixa não existiria.
O assunto foi relembrado pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, que prometeu um desfecho mais breve para esta história. E prometem-se novos desenvolvimentos, caso seja formalizada a candidatura à UNESCO.
Seria redutor classificar só os quarteirões entre o Rossio e a Praça do Comércio, aqueles que se inserem actualmente no Plano de Pormenor e Salvaguarda da Baixa: alguns dos edifícios pombalinos que mantêm o interior preservado estão na zona do Cais do Sodré, junto à Praça de São Paulo, excluídos do plano.
É por isso que o impensável pode acontecer: classificar a Baixa Património Mundial sem proteger os edifícios de interior pombalino que ainda restam. São raríssimos aqueles que estão classificados como Imóvel de Interesse Público, protegidos na sua integridade. A protecção das raras estruturas anti-sísmicas em gaiola que restam fica assim dependente da sensibilidade de investidores e arquitectos, que escolhem não ceder às tentações da construção rápida.
É por isso que a educação é a sensibilização para a salvaguarda do património é tão importante: ver desaparecidos os interiores dos edifícios pombalinos que fizeram história, na resposta pragmática ao terramoto e na construção de uma nova urbanidade, é aceitar uma cidade muito mais pobre e incaracterística, por mais turistas que a visitem.
A ideia de Carlos Moedas, de criar bancos de materiais para futuras obras, mostra uma intenção de manter traços pombalino nos edifícios: são elementos, por assim dizer, standardizados, azulejos, portas e janelas guilhotina, assim como as mansardas de Mardel, que devem o nome a um dos engenheiros que coordenou a reconstrução pós-terramoto, e que se arriscam a ceder à fúria do zinco das mansardas rápidas.
Também a protecção dos miradouros e da vista para o rio parece acertada, ao impedir que o desenvolvimento da cidade desfigure a imagem das colinas. Mas a extensão da zona a proteger é uma incógnita, já que as reconstruções pós-terramoto tiveram lugar em quase toda a frente ribeirinha de Lisboa.
Se o processo avançar, haverá respostas às últimas dúvidas, da protecção dos interiores dos edifícios à extensão da zona a classificar. Outras questões irão permanecer: se a entrada da Baixa Pombalina na lista de Património Mundial irá contribuir para mais e melhor cidade. Uma cidade que seja exemplo da diversidade, mais acessível, vivida e habitada, espaço de encontro e de troca de ideias.