Uma (micro) estrela na Terra
Arrisco-me a prever (e a apostar!) que, nos próximos dois anos, outro enorme avanço irá acontecer na área da fusão nuclear, agora do lado da fusão magnética por confinamento magnético.
No dia 5 de dezembro, o Lawrence Livermore National Laboratory (LLNL), no norte da Califórnia, foi, durante alguns milionésimos de um milionésimo de segundo, o local com maior intensidade de energia libertada (cerca de mil triliões de Watt por centímetro quadrado) do Sistema Solar.
A primeira evidência laboratorial de fusão nuclear com ganho de energia foi aí obtida utilizando a infraestrutura laser mais potente do mundo, a National Ignition Facility (NIF). É um resultado fantástico do ponto de vista científico, podendo vir a ser um dos mais importantes da década, e um feito tecnológico absolutamente notável e transformador, depois de décadas de planeamento, falhanços e impasses.
A possibilidade de utilizar lasers para atingir as condições necessárias para a fusão nuclear foi postulada em 1964 por John Dawson, na altura na Universidade de Princeton, e Nikolai Basov (prémio Nobel da Física pelo laser em 1964). Anteciparam o potencial dos lasers (inventados apenas quatro anos antes, em 1960), mas desconheciam os avanços dos cientistas que estavam a desenhar armas nucleares no LLNL. Aí também procuravam, desde 1958, novas formas de atingir as condições para a fusão nuclear controlada, com o objetivo de produzir energia elétrica, mas utilizando a própria luz emitida por outras explosões nucleares.
Com acesso a experiências (subterrâneas), os cientistas do LLNL tinham, entretanto, descoberto que era fundamental comprimir o combustível para que a fusão nuclear pudesse ser energeticamente mais simples de atingir. O trabalho de LLNL, liderado por John Nuckolls, é publicado na revista Nature em 1972 e traça o caminho para explorar a fusão nuclear com lasers. Esse trabalho, baseado em modelos computacionais muito limitados, é suficientemente promissor para estimular outros laboratórios e universidades a explorar esta ideia, embora só em 1994 tivesse sido desclassificado todo o conhecimento sobre fusão nuclear com lasers, entretanto, descoberto nos laboratórios militares.
“Lasers, Lasers, Nothing but Lasers”
Nos anos 90, e já depois de inúmeras experiências com lasers e com melhores modelos computacionais, avançou a construção da NIF. Em 1998, participei na primeira conferência sobre a ciência na NIF, que se realizou em Pleasanton, junto ao LLNL (também o acrónimo para “Lasers, Lasers, Nothing but Lasers”!). Viajei de Los Angeles com Dawson e, quando nos aproximávamos do LLNL, era visível da autoestrada uma esfera metálica reluzente – a câmara experimental – em torno da qual estavam, na altura, a construir o edifício, do tamanho de três campos de futebol americano, que hoje alberga também todos os lasers e diagnósticos.
É no centro da câmara experimental, com cerca de dez metros de diâmetro, que são focados, numa área de alguns milímetros quadrados, os 192 lasers (com uma energia total de dois Mega Joule) que entram no topo e na base de um miniforno cilíndrico de ouro, com alguns centímetros de altura e de raio. Sob ação dos lasers, o interior do forno aquece e gera raios X que vão conduzir à compressão do combustível (constituído por alguns miligramas de deutério e trítio, dois isótopos do hidrogénio) contido numa esfera com alguns milímetros de raio.
Nessa altura, os cientistas de LLNL estavam muito otimistas. A finalização da construção da NIF ultrapassou todas as especificações do desenho inicial. No entanto, a física tem sempre novas surpresas, em especial quando estamos a explorar regimes extremos, turbulentos e fortemente não lineares. As primeiras experiências, entre 2009 e 2012, ficaram longe da ignição, com muitas instabilidades e assimetrias na compressão. Foram necessários mais dez anos de desenvolvimentos tecnológicos e estudos científicos para compreender toda a física e desenhar e otimizar as experiências agora realizadas.
Nas experiências de fusão nuclear com lasers é necessário comprimir o combustível para que sejam atingidos valores de densidade e temperatura, durante um tempo suficientemente longo, para que as reações de fusão nuclear sejam suficientemente frequentes para se propagarem a todo o combustível, e assim ser libertada toda a energia numa micro-explosão.
O desafio é chegar à ignição
Gerar algumas reações de fusão é relativamente fácil; com frequência assistimos a anúncios da produção de (alguns) neutrões como evidência da fusão nuclear, mas o desafio é chegar à ignição, ou seja, produzir reações de fusão em quantidade suficiente para que se propaguem a uma parte apreciável do combustível. Nas experiências agora realizadas, assistiu-se finalmente ao início deste processo, mas, ainda assim, ficou bastante combustível por “queimar”.
Para se compreender o desafio tecnológico, note-se que o combustível é comprimido por um fator superior a 30. Isto é equivalente a comprimir uma bola de futebol para o tamanho de uma lentilha, mas mantendo a forma esférica da bola com elevada precisão durante toda a compressão. A sua superfície não pode ter rugosidades muito maiores do que a espessura de um cabelo. No momento de compressão máxima, a nossa bola-lentilha tem condições idênticas às do centro do nosso sol.
A investigação em fusão nuclear em Portugal, desenvolvida no Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN) do Técnico, segue a predominância das políticas europeias com ênfase na fusão nuclear por confinamento magnético, focado no projeto ITER [o Reactor Termonuclear Experimental Internacional, em construção no Sul de França] e no reator de demonstração DEMO.
Existe, no entanto, trabalho relevante também na fusão nuclear com lasers no Grupo de Lasers e Plasmas do IPFN e nas suas diferentes equipas. Tito Mendonça, o primeiro português doutorado com uma tese na área da fusão nuclear em 1976, foi um dos principais proponentes do projeto europeu de fusão a laser HIPER (que agora está a ser relançado como HIPER+), a equipa de Gonçalo Figueira desenvolve a tecnologia que será a base para os futuros lasers mais eficientes, Marta Fajardo e a sua equipa desenvolvem diagnósticos para as condições e os estados da matéria gerados nas experiências de fusão nuclear com lasers, enquanto Ricardo Fonseca é o líder do desenvolvimento do código numérico mais avançado para o estudo da interação dos lasers com as condições em torno do combustível para a fusão nuclear.
Temos também formado alguns dos cientistas portugueses mais proeminentes nesta área – por exemplo, Nuno Lemos no LLNL, é um dos membros da equipa responsável pelos resultados agora anunciados, e Frederico Fiúza, que regressará ao IST em 2023 para desenvolver o seu projeto no âmbito de uma ERC “Consolidator Grant”, recebeu a prestigiada “Lawrence Fellowship” no LLNL.
Na Europa a comunidade científica ganhou novo ânimo com os resultados recentes e prepara-se para fazer renascer a investigação nesta área. O número de start-ups na Europa e nos Estados Unidos em fusão nuclear, nas diferentes vertentes, está em forte crescimento. Este financiamento privado, com origem em capital de risco, está a criar equipas científicas de grande dimensão no sector privado, mas também a financiar os grupos de investigação universitários.
Quando podemos esperar mais desenvolvimentos? Já sabemos que apenas uma fração do combustível nas experiências de LLNL foi de facto consumido – deve ser possível agora otimizar os resultados para saltar de ganhos de 1,5 para ganhos próximos de 30 ou 40. Um futuro reator, capaz de produzir energia elétrica de forma economicamente relevante, necessitará de ganhos da ordem de 100 e de “novas” estrelas criadas dez vezes por segundo (enquanto neste momento é gerada uma explosão por dia). Isto implicará desenvolvimentos quer nos lasers e na sua eficiência quer na fabricação dos alvos.
Mas agora será tudo muito mais fácil porque sabemos qual o objetivo a atingir (e que é atingível). Arrisco-me também a prever (e a apostar!) que, nos próximos dois anos, outro enorme avanço irá acontecer, agora do lado da fusão magnética por confinamento magnético, com a demonstração de ganho superior a um (maior energia libertada do que injetada).
Do ponto de vista tecnológico, estamos a entrar na era dourada dos primeiros verdadeiros avanços tecnológicos em direção aos reatores de fusão nuclear, na NIF, no ITER e nas novas máquinas que algumas start-ups estão a desenvolver. Do ponto de vista científico, estamos a entrar num novo regime único dos plasmas, em que o combustível atinge a ignição, tal como nas estrelas, cumprindo o mito de Prometeu, e roubando aos deuses não só o conhecimento, mas também as próprias estrelas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico