A minha experiência pelo caminho sinuoso das bolsas do ensino superior

A bolsa provisória tem problema. Basta pensar no caso de alguém que a receba e tenha o azar de o processo vir a ser indeferido num momento posterior; nesse caso, tem de devolver as verbas recebidas.

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Gabriel Sousa

Sou o José Paulo Soares, tenho 18 anos e entrei para o ensino superior em Setembro passado. Nasci em Cête, uma pequena vila no concelho de Paredes. Desde 2019, sou bolseiro da Fundação Belmiro de Azevedo, por mérito escolar e condições económicas, o que me permitiu frequentar o Colégio Efanor durante o ensino secundário, com a sorte de ter os meus estudos pagos. Hoje, mantenho-me como bolseiro da Fundação a quem muito agradeço pelas oportunidades dadas.

A minha vontade de intervir levou-me a criar, em Janeiro de 2021, o podcast “A conversar é que a gente se entende”, um dos mais ouvidos do segmento da política onde se insere. Ao longo de dois anos, entrevistei desde a Catarina Martins ao André Ventura, passando pelo Mário Centeno, pela Marta Temido ou pelo Miguel Poiares Maduro.

Tal como muitos jovens neste país, em Agosto do ano passado, apresentei candidatura para a bolsa da Direcção-Geral de Ensino Superior. Dia 29 de Setembro, fui notificado de que me tinha sido atribuída a bolsa provisória. Entretanto, havia começado as aulas no dia 19. De lá até agora, todos os meses me é pedida mais documentação. O processo arrasta-se e não sei durante quanto mais tempo assim será.

Foram-me pedidos detalhes e feitas perguntas sobre o agregado familiar e as suas dinâmicas. Foi-me pedida papelada sem fim, todos os meses sem excepção, de Setembro até hoje. Dou por mim a imaginar o conhecido sketch “O Papel”, dos Gato Fedorento, adaptado aos tempos de hoje. “Qual ficheiro? O ficheiro.”

A bolsa provisória tem problemas, bastantes. Basta pensar no caso de alguém que a receba e tenha o azar de o processo vir a ser indeferido num momento posterior; nesse caso, tem de devolver todas as verbas recebidas. O que me leva à seguinte conclusão, paradoxal para quem se candidata a uma bolsa: felizmente, só me pagaram uma mensalidade. Desde o final de Setembro até ao dia em que escrevo este texto só recebi uma prestação, dia 3 de Outubro. Portanto, caso tenha de a devolver, não será um rombo insuportável na conta bancária.

Tenho a sorte de em minha casa não faltar o essencial: está tudo como sempre esteve numa família de classe média baixa da sociedade portuguesa. Tenho também a sorte de ter entrado numa faculdade do Porto, devido ao meu percurso escolar apoiado pela bolsa privada, pelo que consigo continuar a viver em casa da minha mãe. Se tivesse de pagar uma renda, o caso mudaria de figura.

O que me faz escrever este artigo é o susto que senti ao perceber em primeira mão o que passam outros colegas e famílias com situações económicas mais vulneráveis. Outros que, por este país fora, não tenham tido a sorte de nascer no Porto, perto de uma universidade de qualidade, e tenham, por isso, de suportar custos superiores para frequentar o ensino superior. Outros que, por este país fora, não tenham a voz que, apesar de tudo, tenho.

O resultado deste sinuoso processo é tornar as bolsas inúteis para boa parte da população. Só servem, na prática, para pessoas que, mesmo que com esforço, têm liquidez para pagar propinas e a sorte de nascer perto de uma grande cidade. É revoltante pensar naqueles que nem a esta situação chegaram ou que vivem na incerteza de poder pagar as despesas associadas no final do mês. Não se admirem, por isso, com estatísticas como esta: Portugal é o país da OCDE onde a "mobilidade medida em termos de educação é menor” e onde se demora, em média, cinco gerações a passar dos baixos aos médios rendimentos.

É justo um país onde um jovem paga por conjunturas que não pôde escolher? Que democracia é esta onde o distanciamento social e cultural entre a elite e as bases grita de dores de crescimento? É inegável: a ausência destes temas do espaço público, com raras excepções, advém, evidentemente, da falta de consciência do que é contar o dinheiro até ao final do mês.

Venderam-nos a democracia como o regime onde o mandamento invisível obrigava a que vivêssemos melhor que os nossos pais. Em verdade, não é isso que lhe confere valor, mas é para muitos a principal razão de adesão a este sistema político. Não é igual ser filho de pais licenciados ou com o ensino básico. Também não o é nascer numa família monoparental que vive com um salário mínimo ou numa família biparental que vive com o salário médio (miserável que seja) de ambos os pais. Mas, ao fim de quase 50 anos de democracia, justifica-se que continue a ser assim tão diferente?

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