A manada teleguiada: crónica de uma viagem de autocarro entre Brasília e Goiânia
O relato, na primeira pessoa, de uma viagem de autocarro com apoiantes bolsonaristas no dia do ataque em Brasília.
Vista de cima, Brasília desenha-se como uma das mais belas paisagens urbanas do hemisfério sul. No serpentear dos seus recursos naturais e humanos, revela a razão de o traçado urbanístico e arquitetónico da cidade serem patrimonializados, por instituições nacionais e internacionais, entre as quais a UNESCO. Naquela mesma tarde de domingo em que contemplara a cidade desde o avião, espaços e objectos patrimoniais espaços, seriam depredados, destruídos, vandalizados e roubados, por uma turba inominável de pessoas, num ato antidemocrático sem precedentes na história do país.
As pessoas que perpetraram tamanha violência merecem o mais profundo repúdio. O mesmo repúdio deve ser dirigido à acção da “manada teleguiada” de pessoas que a valida(ra)m, com likes, através das redes digitais de transmissão de informações. Entre elas, pessoas que comigo partilharam o espaço de um autocarro.
Pelo início: quando o avião em que eu viajava aterrou no Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, caí na conta de que aquela tarde de domingo 8 de janeiro era, afinal, diferente de todas as outras. Quando liguei o telemóvel às 16h40 (hora local), amigos e familiares avisavam-me por mensagens e telefonemas de que estavam a ocorrer tumultos na cidade.
Dentro do aeroporto, pedi informação junto das autoridades locais sobre as condições de segurança para prosseguir viagem, por terra, para o estado de Goiás, circunvizinho de Brasília. Fui informada de que, em princípio, seria seguro seguir viagem, não obstante a circunstância de “um grupo de bolsonaristas radicais” estar concentrado no centro da cidade.
Ciente de ter chegado à cidade na pior hora possível, decido prosseguir viagem. O taxista Washington N., que me levou até à estação Rodoviária Inter-Estadual, confirmou-me que a cidade estava “calma”.
Excursionistas e as Mulheres da Bandeira
Éramos poucos na estação, talvez duas dúzias à espera do autocarro. Dois homens destacam-se; o primeiro, por ter duas t-shirts vestidas: uma de cor branca, e por baixo, uma de cor vermelha. O outro, por aparentar ser o mais jovem do grupo, apesar de ter o cabelo totalmente branco. Este último, a dois metros de mim, despertou a minha atenção quando disse ao seu colega que usava as duas t-shirts porque se usasse “camiseta vermelha seria linchado” no centro da cidade. Os dois sorriram jocosamente.
Não longe destes homens, duas senhoras de meia-idade conversam entre si na plataforma. São, entre todos, as que se mais se distinguem entre os/as viajantes. Uma distinção marcada pelas cores verde e amarelo que envergam. Uma destas mulheres, de cerca de quarenta anos, transporta na mão uma bandeira do Brasil e um trolley preto de compras de supermercado. A sua companheira de viagem, localizada num ângulo que não consigo observar tão bem, é uma mulher magra, de cabelo grisalho, preso por um elástico de cor preta, usa jeans de cor azul clara e t-shirt verde e amarelo. Transporta uma sacola e um chapéu-de-sol.
O autocarro de que estamos à espera chega meia hora atrasado. O lugar que me foi atribuído está atrás (mas do lado oposto no corredor) do lugar onde a mulher da bandeira fica sentada, o que me dá ampla visão sobre o seu lugar e a sua acção. Reparo nesta altura que tem as unhas pintadas com a reprodução da bandeira do Brasil. São unhas cuidadas, de quem parece não ter de trabalhar esforçando as mãos. À minha frente, no banco frontal que dá costas ao meu lugar, a sua companheira de viagem está também sentada. Conversam em voz alta.
À minha direita, no banco alinhado com o meu, está sentada uma mulher jovem, de óculos, que viaja sozinha. E ao lado esquerdo face àquele onde estou sentada, com o corredor a separar-nos, está uma mulher sexagenária de cabelos lisos alourados e blusa verde. Desde o início da viagem que esta mulher visiona vídeos no telemóvel sem uso de auricular, tornando públicos os sons que saem do aparelho.
À sua frente, a mulher de chinelos brancos e casaco verde e amarelo, faz o mesmo, com o som ainda mais alto. O grupo de quatro homens, sentados nos lugares mais frontais do autocarro, também se junta ao ruído de sons de telefones, numa descortesia clara para com os passageiros do autocarro.
De repente, irrompe pelo autocarro a dentro uma sinfonia distópica de sons e imagens da praça dos três poderes, em Brasília. A mulher sexagenária, a sorrir, interage comigo, pergunta-me se “estou sabendo o que está a acontecer no centro da cidade”. Eu digo que não sei. Ela então mostra-me no seu telemóvel, vídeos da plataforma KWAY onde se se vêem imagens que circulam. Vejo também outras imagens ficas e em movimento com palavras “explode-Brasília”, e condenações de “morte ao comunismo”, e exaltações de “pátria”, Deus e da ‘família’.
A sexagenária vestida de verde sorri ao falar-me do que está acontecer. Eu tremo por dentro. Ao aperceber-se de que sou portuguesa, começa a fazer comentários apreciativos sobre Portugal. Diz-me ainda que irá visitar o meu país em novembro. Eu respondo, laconicamente, que lhe desejo boa viagem e estadia.
Sentada no banco da frente, face à senhora sexagenária, a mulher da bandeira, passa a viagem ao telemóvel. Verbaliza para a amiga que está cansada, pois está em viagem desde as 5 horas da manhã. Do lugar onde estou tenho ângulo de visão que me permite ver e ouvir praticamente tudo o que ela diz. Conversa com a família, que está à sua espera, e percebo que parte da sua família discorda da sua decisão de vir.
Verbaliza ao longo da viagem, por várias vezes, comentários homofóbicos, racistas, de ódio à pobreza. E faz muitas afirmações agressivas contra o presidente eleito e contra a primeira-dama. É verbalmente mais agressiva para com a mulher do Presidente do que para com qualquer outra pessoa por si nomeada. Adjetivos inomináveis de serem escritos aqui.
Os homens do grupo sentado na frente, corroboram as palavras desta mulher em vários momentos, sorrindo e apoiando com linguagem gestual. O ódio destilado por esta mulher espelha a manada teleguiada a que tanto ela como outras pessoas no autocarro parecem pertencer. Estão a receber constantemente imagens e sons de vídeos e áudios, que reproduzem em alta voz para todos ouvirem. Como que ratificando a barbárie com o silêncio do resto das restantes pessoas que ali viajam.
Esta mulher fala arrazoados de palavras como uma lunática, dentro de um regime de verdade validado pelo império das notícias falsas, e refere-se ao “Povo” com estando a tomar nas suas mãos a sua casa. Entre impropérios e insultos, visiona vídeos de pessoas de dão instruções sobre como devem proceder, conversa com pessoas que dizem estar dentro de edifícios, as quais auto-alegam que estão a ser ‘patriotas’, a agir em nome ‘do povo’.
Há laivos de fanatismo na sua retórica. Há também referências agressivas contra pessoas por si nomeadas, entre elas, o pastor e cantor Kleber Lucas. O auge da retórica agressiva desta lunática ocorre no momento em que reage, num riso histérico, à notícia de que entraram dentro do gabinete de Alexandre de Morais e lhe arrancaram uma porta de um armário; vejo a imagem da porta arrancada no ecrã do seu telemóvel e fico atónita, incrédula. Continuo em silêncio. Eu e todo o autocarro.
Durante as três horas seguintes, este chorrilho de verborreia só foi silenciado durante a meia hora em que ela esteve a dormir. Nas imagens e sons que esta mulher reproduz, imagino com incredulidade o horror que está a acontecer no centro da capital do Brasil. E digiro com angústia e em silencio a violência verbal da agressão que ela está a fazer a todos nós, ocupantes deste transporte público.
Aparentemente alheia a tudo isto, a mulher jovem sentada ao meu lado direito, colocou os auriculares no início da viagem e, com o telemóvel em punho, começou a ver uma celebração de uma missa católica. Por duas vezes, esta mulher jovem interrompe a sua ladainha de fé quando os sons dos telemóveis dos viajantes antidemocráticos se sobrepõem ao seu próprio som de escuta. Nessa altura, a mulher jovem olha para mim, revira os olhos, e abana a cabeça em reprovação pelo que está a acontecer à nossa volta.
Chegamos a Goiânia às 22 horas de domingo. Ao recolhermos as bagagens, continuamos em silêncio, com exceção da mulher lunática de casaco verde e amarelo, que pede ao motorista que tenha cuidado com a bandeira do Brasil.
Em silêncio, alguns passageiros olham para ela. A maioria dispersa-se já, saindo com os seus pertences para longe do autocarro. O motorista não reage às palavras da mulher, e continua a tirar as malas de outros passageiros. Eu troco olhares cúmplices com um casal jovem, talvez sejam estudantes, que estão ao meu lado à espera da bagagem. Muitos de nós reprovamos o comportamento antidemocrático e violento daquela(s) pessoa(s) mas ninguém se atreveu a proferir uma palavra de repúdio ao comportamento desta(s) pessoa(s) durante a viagem.
A minha mala está ao lado do trolley da mulher lunática. O motorista retira a mala dos estudantes primeiro, a minha mala depois, seguindo a ordem de alinhamento da bagagem, e a bandeira dela fica para o fim. Presa dentro do seu regime de pós-verdade, ligada ao grupo a que pertence, a bolsonarista lunática volta ao ecrã do seu telemóvel. Em modo telecomandado. Ali a vejo pela última vez nesta viagem.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico