Isabel Cristina Campos tinha 20 anos. Em 1982, foi atacada por um homem que a tentara violar e que acabou por esfaqueá-la mortalmente, na cidade de Juiz de Fora, no Brasil. Foi recentemente beatificada no Brasil, tendo o Papa Francisco elogiado o seu exemplo “por defender a sua dignidade como mulher e o valor da castidade” (foi escrito que Isabel Cristina tinha “mantido a virgindade intacta”, comprovada na autópsia).
Isabel Cristina Campos merece ser lembrada e reconhecida, como tantas outras mulheres vítimas de violência e brutalmente assassinadas. Porém, os termos do seu reconhecimento pelo Vaticano – a menção à “dignidade como mulher e o valor da castidade” – são um presente envenenado para a luta contra a violência sexual. Neste discurso, a violação é representada como um ataque à castidade: o bem a proteger não é a liberdade sexual das mulheres, mas uma ideia antiga de honra e dignidade, simbolizada na ideia patriarcal da virgindade feminina.
Como se a dignidade das mulheres residisse no hímen intacto – e como se houvesse vítimas que valem mais que outras e mulheres que valem mais que outras. A velhíssima dualidade entre mulheres virtuosas e tentadoras, que ainda ressoa em tantos julgamentos sociais e jurisprudenciais. Louvam-se as mártires, imaculadas e mortas, enquanto se descredibiliza a maioria das histórias e vítimas de violência sexual – escrutinando-lhes o passado sexual e culpando-as pelos crimes de que são alvo.
Isabel Cristina personifica a vítima credível, tanto pela sua biografia – uma mulher jovem e profundamente católica – como pela brutalidade do homicídio. A juventude, a violência cometida por um estranho e a resistência física à agressão preenchem o imaginário da “vítima perfeita” de uma violação.
Porém, a violação não é sempre um ataque cometido por um estranho, em posse de uma arma. É, muitas vezes, cometida por aqueles que conhecemos, em quem confiamos e que amamos. Acontece dentro das nossas casas, nas nossas relações de proximidade, intimidade, namoro e casamento. Nem sempre há gritos e resistência física. Muitas vezes, é estranha, dolorosamente confusa e silenciosa, quando perpetrada por pessoas próximas. Com frequência – mesmo quando atacadas por estranhos – as vítimas não reagem fisicamente: paralisam por medo.
“Nunca lhe chamei uma violação” ("I never called it rape"): o título do livro de Robin Warshaw, originalmente publicado em 1988, desocultou a dimensão epidémica do date rape, mostrando que a maioria das mulheres violadas é vitimada por um homem que conhece. Muitas vezes, as mulheres que foram vítimas de violência sexual não a designam ou reconhecem como tal, precisamente porque nomear como abuso, violência ou violação nos parece absurdo ou impossível quando os agressores são pessoas que conhecemos e de quem gostamos. Juntam-se outros factores, entre os quais a carga que traz ver-se a si própria como vítima.
Numa altura em que o Vaticano ainda lida tão mal com os casos de abuso e violência sexual reportados dentro da própria Igreja – sabemos das muitas omissões, encobrimentos e silêncios, em diferentes partes do mundo – as palavras do Papa Francisco sobre Cristina Santos pouco acrescentam ao combate à violência sexual. Se a Igreja Católica quiser, de facto, contribuir para erradicar a violência sexual, deve começar pelos seus próprios silêncios, cumplicidades e armários – e deixar de dividir as mulheres entre as castas e as outras.