Também no Natal o nosso passado condiciona o(s) presente(s)
Ninguém consegue estar concentrado, ter estabilidade, ser produtivo ou estar tranquilo se não souber que pode não ter onde dormir no dia, na semana ou no mês seguinte.
Portugal tinha em 2021 (últimos dados disponíveis) 6369 crianças e jovens acolhidos, por isso privados do direito de crescer na família. Anualmente, são mais de dois mil os que deixam o acolhimento, muitos com projeto de vida “autonomização” ou “reunificação familiar”. O que nem sempre funciona, acabando por não se identificarem com o modus vivendi da família. E, por isso, vivendo sozinhos, com amigos, namorados…
O país não dispõe (ainda) de nenhum estudo abrangente que caracterize as trajetórias de pós-acolhimento, mesmo relativamente a questões de educação/formação, empregabilidade, problemas com a justiça, adições, falta de alojamento ou mesmo bem-estar subjetivo. No entanto, sabemos por inúmeros estudos — nacionais e internacionais — que as experiências adversas vivenciadas na infância são responsáveis por consequências que se prolongam ao longo da vida, pois o que se passa na infância, não fica na infância.
Igualmente, diversos estudos comprovam que as consequências da “institucionalização” podem provocar alterações de crescimento, comportamento, de nível cognitivo, desenvolvimento socioemocional, etc.
De acordo com investigações realizadas em vários países, estamos perante jovens adultos que apresentam 25 vezes mais probabilidades de serem “sem abrigo”, 40 vezes mais probabilidades de entrar no sistema de justiça criminal, sete vezes mais probabilidades de morrer antes dos 25 anos, 25 vezes mais probabilidade de serem profissionais do sexo.
Há ainda referência de que 55% dos jovens adultos entrevistados atribuíram os seus problemas de saúde mental à experiência de acolhimento. Por tudo isto, parece-nos de elementar justiça social promover discriminação positiva em áreas prioritárias como o acesso ao mercado de trabalho — normalmente a única fonte de rendimento disponível para quem deixa o sistema de promoção e proteção, nomeadamente o acolhimento —, o acesso à saúde mental (pois sabemos que, enquanto acolhidos, uma percentagem enorme é acompanhada em psicoterapias, mas, após a saída, tantas vezes acompanhada por deslocalização, não existe continuidade) e o acesso à habitação, pois ninguém consegue estar concentrado, ter estabilidade, ser produtivo ou estar tranquilo se não souber que pode não ter onde dormir no dia, na semana ou no mês seguinte.
É precisamente a habitação que nos remete para a palavra mais ouvida nesta semana — Natal!
Não apenas as paredes, portas e telhado, mas quem nela habita e nos laços que a transformam num lar, capaz de oferecer paz, harmonia e união, que tanto valorizamos nesta época especial.
O Natal dos Ex-acolhidos (Ex de EXemplos fabulosos de resiliência e superação) é onde recordam a infância, fazem comparações (com quem vive a azáfama de ter uma casa cheia, luzes, prendas, árvores de Natal e enfeites coloridos), sonham com a família que irão construir e os presépios que voltarão a montar. Mas, até lá, há alguma angústia e imaginam como serão e como estarão irmãos que foram adotados, outros de quem perderam o rasto — em tempos colocados em instituições que segregam por sexo (apenas rapazes ou só raparigas) —, como os amigos que cresceram na mesma Casa de Acolhimento e com quem partilharam o quarto em crianças.
É uma época em que sentem particularmente a diferença, até pela indiferença que por vezes a sociedade demonstra. Recordo por exemplo três irmãos: dois partilham a mesma cela num estabelecimento prisional e o outro tenta uma visita aos mais novos, nesta época natalícia. No entanto, como está igualmente a cumprir pena, mas numa outra prisão, não tem autorização atempada devido à greve (certamente com motivos justos) dos guardas prisionais.
Ao visitar os três irmãos, tentamos transportar os abraços, as recomendações e as promessas de carinho que todos transmitem. Pessoalmente, são os abraços mais fortes que recebo, pois enquanto única visita que têm na prisão — não há família ou cuidador da Casa de Acolhimento onde cresceram que o faça — as emoções são intensas e “sempre dá para perceber que há vida lá fora e alguém que espera por mim”, como dizem.
Também a saúde mental atira alguns jovens ex-acolhidos para a mendicidade (arrumadores de carros que nunca foram condutores) e para habitação precária — “sou ocupa”, diz quando recebe o cabaz de Natal e a ração para os seus cães, única companhia diária de quem recusa integrar-se na “sociedade que nunca cuidou de mim”.
Mas há tantos com trajetórias fantásticas, que inspiram outros e querem muito ajudar os “seus irmãos”, como chamam a todos os que vivem ou viveram em acolhimento. Mostram que “o destino pode destinar, mas a decisão é deles”!
No final do dia, recordo Gedeão no poema Dia de Natal:
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhe darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria
Vamos tirar o manto da invisibilidade a estas vítimas precoces, mas com a vida toda para sofrer as consequências. Hora de agir de forma concertada, de melhorar o perfil de saída de quem cresce acolhido e de facilitar a transição.
Que a vida seja uma reconstrução constante e que nos consigamos libertar dos “pesos” que não são nossos, sem culpa nem vergonha! Futurar e esperançar são os verbos a conjugar quando o Homem quiser e pode ser já hoje…
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990