Eutanásia? Só no continente…
Será que a lei da eutanásia só se aplica ao território continental e não vigorará no território insular?
1. Ficou e é célebre, nas gentes insulares, a pequena brincadeira de palavras de alguém dizer que tinha ido ao continente, deixando o interlocutor na dúvida sobre se a viagem havia sido curta – ao hipermercado – ou longa – ao território continental. Ocorreu-me este trocadilho bem-humorado – pois é a única maneira de levarmos este assunto parlamentar com a seriedade que o mesmo exige – a respeito de as assembleias regionais não terem sido ouvidas na feitura da lei da eutanásia.
2. O assunto tornou-se mais grave do que o que é normal, não só por ter havido uma inédita queixa formal dos presidentes de ambos os parlamentos, como por a Assembleia da República ter tido um comportamento oposto no precedente processo legislativo, em que não prescindiu da opinião daqueles órgãos.
Percebe-se bem o porquê dessa omissão se se recordar o desejo de a maioria partidária prevalecente – conquanto não social, nem muito menos cidadã, tendo tido mesmo a ousadia de recusar a necessidade de um referendo, que já havia aceite outrora no aborto, sendo a questão homóloga – reduzir ao mínimo a contestação que o diploma bem merece, assim como isso se compreende pela pressa na sua aprovação, como se Portugal estivesse suspenso da sua entrada em vigor.
Mais plausível será a explicação residir na proverbial inépcia dos seus promotores, que – do alto das suas qualificações jurídico-constitucionais – se esqueceram deste “pormenor”.
3. Afora tudo o que tenho dito e penso sobre este diploma, é a ocasião para lamentar este comportamento antidemocrático, mas acima de tudo inconstitucional e ilegal da Assembleia da República, que se contradiz a si própria e faz uma triste figura.
Eis uma violação grosseira de um dever de audição prévia na participação do procedimento legislativo de que as Regiões Autónomas gozam na legislação do âmbito da República em matérias que lhes digam respeito, nos termos do art. 229º, nº 2, da CRP, e que tem sido interpretado amplamente.
Havendo até vários direitos de participação na instrução legislativa, por junto com a consulta ao CES, legislação laboral e autarquias locais, este sem dúvida que se apresenta como o mais forte de tais direitos, radicando na opção fundamental que Portugal fez em ser um Estado Regional.
Quando se considera que a lei da eutanásia em nada tange o âmbito regional, é de interpretação elementar que não é de um assunto só regional que se trata, antes de todo e qualquer assunto no qual as Regiões Autónomas, não podendo legislar directamente, dele se ocupem em qualquer das funções jurídico-públicas que exerçam autonomamente, maxime as funções legislativa e administrativa.
Ora, só pode ser com animus jocandi que se afirma que a lei da eutanásia não é atinente à actividade das Regiões Autónomas, quando estas têm um sistema regional de saúde próprio, com hospitais que integram a Administração Regional diversa da do Estado, onde as pessoas serão, então, eutanasiadas.
4. Ou será que a lei da eutanásia só se aplica ao território continental e não vigorará no território insular?
Claro que isso seria um absurdo e espero bem que o Tribunal Constitucional, quando analisar a questão – preventiva ou sucessivamente – mantenha a sua jurisprudência anterior, na qual, por diversas vezes, considerou leis inconstitucionais por preterição deste dever de audição legislativa regional, que não é uma formalidade dispensável, cujo incumprimento possa redundar, simplesmente, em mera irregularidade.
Mas como os tempos estão incertos quanto ao prestígio dos residentes do Palácio Ratton – que até tem dois juízes com mandatos caducados, um deles há mais de um ano e sendo seu vice-presidente, em manifesto abuso de poder por parte de quem não os quer substituir – temo que ali tudo possa acontecer...
Como tudo parece ser possível suceder para os lados do Palácio de Belém, cujo inquilino veio há poucos dias referir – num contexto intimista-religioso enigmático, não sendo o momento nenhuma inocente coincidência – que os católicos em boa medida se tinham “demitido” da sua intervenção cívica, dando assim a entender que, sozinho, não se lhe poderia exigir que segurasse mais a cruz dos valores correspondentes à sua religião…
Decididamente, estes não são os tempos da coerência, da coragem e da verdade na Política se as convicções de cada um ofenderem o “politicamente correcto” e os “donos do pensamento único” que capturaram a opinião pública portuguesa, sempre ávidos de, na sua intolerância, “cancelarem” quem deles discordar.