Cheias de Lisboa: alterações climáticas ou desleixo municipal?

A atribuição de culpa às alterações climáticas para fenómenos como os que recentemente aconteceram em Lisboa deveria ser hoje indubitável.

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ANTÓNIO PEDRO SANTOS

As festividades de fim de ano já cá estão e seguem bem encaminhadas. Enquanto nos preparamos para os dias fatigantes de comprar presentes, reservar viagens, preparar refeições, limpar as nossas casas, eis que muitos portugueses receberam uma visita ainda mais desagradável do que a daquele familiar bazófio que jorra opiniões não solicitadas a torto e a direito: a chuva extrema.

Entre a noite do dia 12 e o início da tarde de 13, uma grande concentração de precipitação tomou conta do continente português, sendo a região da Grande Lisboa a mais afectada. A forte precipitação cortou as principais artérias da capital, transformando-a num autêntico lago. O fenómeno, já designado por representantes do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) como "o evento de precipitação mais importante dos últimos anos na região de Lisboa", bateu o maior valor de precipitação diária desde que há registo.

Durante as 24 horas da tarde de segunda à tarde de terça, a estação meteorológica do Instituto Geofísico registou 134,6 litros de chuva por metro quadrado de território, superando o recorde anterior registado em 18 de Fevereiro de 2008 em mais de 16 litros. O fenómeno, que permitiu que as ruas de Lisboa suportassem pequenas embarcações, surge apenas poucos dias após um outro recorde de pluviosidade.

A 8 de Dezembro, de acordo com o IPMA, nunca tinha caído tanta chuva sobre Lisboa em apenas uma hora, tendo excedido o máximo anterior registado nas inundações de Novembro de 1983. Entre as 22h40 e as 23h40, foram registados 47,8 mm de precipitação na estação meteorológica da Tapada da Ajuda. A quantidade de chuva acumulada num curto espaço de tempo na capital portuguesa é inédita, mas Lisboa tem sido recentemente o recipiente destes fenómenos outrora considerados estranhos — o tornado de baixa intensidade que atingiu a baixa pombalina há apenas um mês é outro exemplo.

Há uma razão pela qual estes fenómenos se têm tornado cada vez mais frequentes. A resposta está no título, e não, não se deve ao desmazelo por parte de um município ou outra instituição governante. Não me interpretem mal, o sistema de drenagem e tratamento de água de Lisboa precisa desesperadamente de melhorias e felizmente Carlos Moedas parece ter-se apercebido disto, ao aprovar a construção de dois grandes túneis para este fim há um par de meses. Mas atribuir a totalidade da origem das cheias ao trabalho pobre dos autarcas anteriores, ou ao facto de as sarjetas de Lisboa estarem entupidas, é descurar e subestimar a importância destes fenómenos climáticos extremos progressivamente mais comuns.

A chuva que caiu sobre Lisboa não pode ser considerada apenas mais um dia húmido de Inverno. Os registos do IPMA mostram que estas não foram chuvas vulgares, com os cientistas a afirmarem que estas irão acontecer com maior regularidade e impacto. É absolutamente necessário que estejamos preparados para lidar com este cenário; experienciamos o resultado da improficiência na semana passada, portanto, os apelos ao governo e as instituições responsáveis são extremamente bem-vindos. Mas chamar às alterações climáticas um biombo que esconde tudo o que é mau, ou dizer que não há relação de casualidade é perigoso, falso e revela desconhecimento sobre o que implica o próprio conceito das alterações climáticas – e aqui vêm os comentários muito criativos de como chove sempre no Inverno e faz calor no Verão.

Muitos destes novos fenómenos chegam acompanhados de debate sobre a sua causa, e embora seja fácil para os negacionistas atribuírem razão a tantos outros factores que não as alterações climáticas, é, todavia, imperativo compreender que o sistema climático com o qual muitos cresceram — eu não — já não existe. A humanidade modificou irrevogavelmente a forma como os fenómenos climáticos ocorrem e continuam a evoluir.

As alterações climáticas são um processo global, não é algo que ocorre somente em locais desfavorecidos, como certos países asiáticos ou africanos. É algo que acontece em todo o lado, a todo o momento, é um constante e contínuo processo que tende apenas a agravar-se à medida que se passam os anos e todos nós vivemos dentro desta nova realidade climática e dentro de todas as mudanças que ela implica. Todos os fenómenos meteorológicos desdobram-se agora no sistema climático que nós criámos. A atribuição de culpa às alterações climáticas para fenómenos como os que recentemente aconteceram em Lisboa deveria ser hoje indubitável, mas aqui estamos.

Sim, os sistemas têm de ser responsabilizados. As tempestades e as inundações consequentes, todas as ondas de calor e resultantes secas, são susceptíveis de ser agravadas pelas condições nas quais pousam. Consideremos, por exemplo, os incêndios florestais, realidade que os portugueses bem conhecem — melhor do que as cheias, atrevo-me a dizer. Se as florestas não forem limpas e as folhas secas não forem varridas, isso irá, como sabemos, favorecer a propagação do fogo. Mas este queimará de forma mais longa e intensa devido ao aquecimento global.

É absolutamente da responsabilidade do Estado assumir a limpeza das florestas, construir melhores sistemas de drenagem, criar condições favoráveis e fornecer os instrumentos necessários que nos habilitem a lidar com estas ameaças, mas é errado dizer que a única causa da destruição são sistemas quebrados, enquanto se propaga que estes são fenómenos sempre existiram e que “nada disto é novo”.

Um plano de adaptação às alterações climáticas eficiente é crucial para uma cidade ao nível do mar como Lisboa. Mas não podemos remendar nada sem discutir todos os factos. Incongruência e ingenuidade têm-nos colocado na situação preocupante que enfrentamos, e o debate não pode ser binário. Uma banheira não transborda simplesmente quando alguém se esquece de instalar um ralo, acontece também porque não se fechou a torneira.

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