Transmissão online de reuniões autárquicas: uma necessidade democrática
A transmissão online das reuniões dos órgãos autárquicos não pode ficar dependente apenas da boa vontade dos eleitos locais e deve ser tornada obrigatória centralmente.
Um dos aspetos que a pandemia evidenciou foi que muitas atividades correntes não têm de ser realizadas presencialmente. Algumas tarefas profissionais podem ser executadas remotamente; algumas compras e vendas podem ser feitas online; eventos culturais, académicos ou políticos podem ser organizados através de meios digitais.
Durante os confinamentos, muitos municípios e freguesias passaram a transmitir online as reuniões de câmara, de assembleias de freguesia e de assembleias municipais. Sobre a importância destas últimas, o presidente da Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia, Albino Almeida, escreveu um interessante artigo no qual explicitou as funções daqueles órgãos autárquicos, que apodou de “casas da democracia”, e salientou a relevância do período de intervenção do público, apelando aos cidadãos: “Se ainda o não fez, faça o favor de entrar na AM do seu concelho e de participar na construção de uma sociedade que se quer mais justa e solidária!”
Ainda que por razões diferentes, a mesma importância cívica e democrática pode ser atribuída às reuniões de câmara e de junta de freguesia e às assembleias de freguesia. Infelizmente, as reuniões da Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia deixaram de ser transmitidas online (ao contrário da prática mantida em outros concelhos) e aquelas que anteriormente o foram deixaram de estar disponíveis no canal de YouTube deste órgão autárquico.
A participação a que se referiu Albino Almeida não se pode limitar à intervenção dos cidadãos nos púlpitos das reuniões autárquicas. Participar deve também incluir assistir aos trabalhos, o que permite aos cidadãos conhecer o modo como a gestão das suas autarquias é feita, bem como as propostas que os eleitos locais têm para oferecer. Considerando que a cobertura mediática da política local é necessariamente reduzida (muito mais do que a da política nacional), as reuniões dos órgãos autárquicos são uma privilegiada fonte de informação para os cidadãos avaliarem as forças políticas locais e decidirem o seu voto de forma mais informada.
Naturalmente, a participação cidadã nestas reuniões é restringida por fatores físicos. Desde logo, a lotação das salas é forçosamente limitada e não permite a afluência de todos os cidadãos de um concelho. Adicionalmente, a deslocação até ao espaço da reunião pode constituir um obstáculo àqueles cidadãos que não têm disponibilidade horária (por razões laborais, de saúde, familiares, etc.) e/ou que não têm meios de locomoção próprios ou públicos.
Se em concelhos como S. João da Madeira, com uma área de 8 km2, a mobilidade pode não ser uma questão, em municípios como Bragança, Odemira ou Idanha-a-Nova (com mais de 1000 km2 de superfície) a deslocação até às reuniões autárquicas pode ser problemática. Isto causa uma desigualdade intolerável entre os cidadãos com meios de deslocação adequados (que podem participar) e os que deles não dispõem (e não podem participar). Acresce ainda que muitos cidadãos vivem, estudam e/ou trabalham fora dos seus concelhos e freguesias de origem, mas neles mantêm um interesse cívico, não podendo, porém, participar nas reuniões autárquicas por se encontrarem deslocados.
Todos estes obstáculos seriam contornados com a transmissão e gravação online das reuniões públicas dos órgãos autárquicos, salvaguardando-se ainda a possibilidade de os cidadãos intervirem remotamente no espaço a eles destinados na ordem de trabalhos.
Nas minhas interações com autarcas em relação a este assunto, os que se opõem à transmissão online invocaram três razões: o regulamento geral de proteção de dados (RGPD), falta de meios técnicos e uma pretensa ofensa à dignidade dos órgãos autárquicos por parte dos espectadores e/ou dos que têm acesso às imagens das reuniões.
Em relação à primeira, o RGPD não impede a gravação e transmissão da imagem e voz de nenhum cidadão, apenas exige que essa gravação e transmissão sejam autorizadas. Quanto à segunda, atualmente, a tecnologia que permite a transmissão de imagem e som está disponível, é de fácil utilização e é económica.
No que respeita ao terceiro motivo, invoca-se que os cidadãos menos informados recorrem amiúde ao insulto nas plataformas onde as reuniões são transmitidas. Ora, qualquer rede social oferece a possibilidade de impedir a publicação de reações por parte dos espectadores.
Argumenta-se ainda que as imagens podem ser usadas para ridicularizar os órgãos autárquicos. Um autarca com quem tive o prazer de debater esta questão exemplificou com um programa de Ricardo Araújo Pereira, que reproduziu imagens da Assembleia Municipal de Caminha (aqui, a partir de 22:16).
Devo confessar que tenho dificuldades em entender este argumento, que censura quem divulga comportamentos menos dignos de instituições públicas e não quem efetivamente os pratica. Aliás, as ofensas à dignidade das instituições partem por vezes dos seus próprios membros, como demonstrou uma reportagem da Sábado publicada em junho deste ano, detalhando berros, ameaças, ofensas ou uso de linguagem menos própria em órgãos democráticos.
Depois de publicada esta peça, registaram-se outros episódios que não dignificam de todo as instituições autárquicas: na Assembleia Municipal de Oeiras, o presidente de câmara Isaltino Morais comparou um deputado da oposição ao ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels; mais recentemente, em reunião de Câmara de Almada, a presidente Inês de Medeiros cortou a palavra hostilmente e de dedos em riste (aqui, a partir de 4:04:50) a uma cidadã por alegadamente se sentir ofendida com a expressão “Almada colonial”. Nestes casos, a transmissão online permite aos cidadãos ficar a conhecer quem defende e quem ofende a dignidade de órgãos representativos das autarquias e agir política e civicamente em conformidade.
Por todas estas razões, a transmissão online das reuniões dos órgãos autárquicos não pode ficar dependente apenas da boa-vontade dos eleitos locais e deve ser tornada obrigatória centralmente, através de aditamentos à lei n.º 75/2013. Creio que não se poderá falar em atentado à autonomia das autarquias, uma vez que este diploma já lhes impõe diversas obrigações, mas sim numa medida que promove a participação cidadã na Cidade, a transparência da gestão pública e a disseminação de informação relevante para a democracia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico