Os apoios às artes e a falácia dos números

Para ter acesso ao ‘subsidiozinho’, vivemos perigosamente a caminho de um jadnovismo pós-moderno.

Terminei o meu último artigo, publicado aqui no p.p. dia 7, dizendo que “por ir já longo o artigo, para outro ficam outros aspectos, como vg, o carácter de expansão da actividade e consequente exponenciação de verbas, cujos recursos são, naturalmente, limitados (…)”. Esse crescimento anormal do número de criadores no teatro (ou para citar a ironia de Pacheco Pereira, “Portugal dever ser o país com mais criadores por metro quadrado”) decorre das políticas a que o próprio Estado induz. É vertiginoso o número de cursos do ensino profissional de teatro; e ainda mais vertiginoso o número de formados em cada ano. Mesmo dando desconto ao facto de se poder tirar um desses cursos e visar o ensino ou a aprendizagem de práticas que, na sequência de cursos superiores, possam ser úteis as aprendizagens nessas escolas e ser essa a opção para o modo de completar o ensino secundário, a verdade é que a maioria deles quer mesmo ser praticante profissional na área do teatro e, dentro dele, esmagadoramente o que quer é ser actor. Ou seja, feitos os descontos e somados a estes os formados nas Escolas Superiores de Teatro, são, mesmo por defeito de cálculo, só no Porto, cerca de 100 ou mais novos actores ‘vomitados’ anualmente para um mercado de trabalho que nunca os poderá absorver sequer a 20%.

O fenómeno explica-se por várias razões, mas uma delas reside, no caso das escolas privadas, se terem tornado dependentes do número de alunos e da taxa de aproveitamento. Usando o expediente para atingirem um financiamento (em si justo), distorce-se a qualidade e carácter deste mesmo ensino. Agravado por haver pouco rigor no acesso, muito facilitismo na conclusão dos cursos e notas finais inflacionadas. O que revela, da parte do Estado a preferência pela estatística para fintar o baixo nível de literacias (não apenas a da Língua, mas várias) e indiferença a baixa massa crítica. Quer dizer: se a quantidade gera qualidade, a qualidade não é triada em todas as circunstâncias para potenciar a % de qualidade resultante da quantidade, indo borda fora quer a qualidade quer a que a quantidade pode gerar. Imagine-se por momentos que este tipo de coisas acontece na Medicina em escala idêntica e é suficiente para todos ficarmos aterrados ao entrarmos num Hospital. O que, desta maneira acontece é paralelamente idêntico, se se perceber que a cultura (e nela também o teatro) é, por si, uma forma de saúde de natureza espiritual.

É sabido que a esta massificação do ensino, em várias áreas, chamam democratização, o que é uma falácia: democratizar o conhecimento e os saberes é apetrechar em condições de igualdade o acesso a ele e não o abaixamento da qualidade dos conteúdos e do grau de exigência na avaliação. Democratizar é precisamente a inversa desta realidade: é dar acesso ao que antes estava reduzido a poucos, por razões de classe sócio-económica, mas com a mesma ou maior qualidade. Não é a estatística de % de habilitações escolares, sem correspondência real às habilitações de competência para o exercício da actividade profissional que conta, mas somente à contagem de ‘canudos’. Ora, isto repercute-se da mesmíssima maneira na forma um tanto patética com que se rapa de números de grupos e criadores (sub)financiados para esconder o (sub)financiamento e a ausência de uma selecção objectiva e rigorosa pelas perspectivas de gosto, proximidade ou moda.

Mas recuperemos o tema e logo encontramos algo ainda mais lamentável, porquanto, tais formados, ao entrarem na vida prática, desfaz-se o sonho que se lhes criou e na vez de se tornarem em profissionais de teatro, a maioria acaba em caixas de supermercado, a servir à mesa ou em call centers. Ou talvez isso nem seja o pior. Talvez o pior seja mesmo que se cria uma outra forma de discriminação pela negativa no acesso à prática artística, mesmo que precária e sem uma verdadeira certificação profissional (mas deixemos isso para depois, que muito há a dizer): os que têm pais para os sustentar ou conseguem entrar nos círculos de favores ainda lá prosseguem, pelo menos durante algum tempo, enquanto são emergentes, mas dali a 10, 15 anos, passam a ‘imergentes’ no desapoio, mantendo-se um círculo fechado e viciado a ‘explicar’ os subfinanciamentos (que os mais jovens aceitam porque em princípio de carreira) em nome de mais grupos e outras falácias no género. E mesmo assim, esses jovens prosseguem recorrendo a trabalhos paralelos, transformando o tempo e disponibilidade física e mental durante os ensaios e apresentações a público num voluntarismo, onde, no teatro, a verdadeira profissão os condiciona. Assim há profissionais (ainda que esmagadoramente em part-time) mas não há teatro profissional no tecido produtivo do mesmo.

Mesmo assim, para ter acesso ao ‘subsidiozinho’, vivemos perigosamente a caminho de um jadnovismo pós-moderno. Quem não respeitar os cânones e responder à uniformidade dos supostos critérios de concursos com ‘tudo à molhada’, sem atender à riqueza da diversidade artística e à importância da singularidade de cada um, está ‘tramado’. A definição de parâmetros objectivos que integrem essa diversidade num plano estratégico de desenvolvimento do teatro é substituído por pseudo-avaliações artísticas, escondendo o gato com o rabo de fora e, à maneira de Pilatos, criando júris ad-hoc pseudo- independentes, que afinam pelo diapasão pós-modernista. E quem não o é apanha o residual. E se cumpre nos objectivos a que se propõe, torna-se num perigo para ‘eles’ e toca a pô-los fora do alcance de aceder aos financiamentos a que concorreram. São significativos os quantos a isso são sujeitos todos os anos e eliminando metodicamente os ‘históricos’ para evitar que no futuro outros prossigam um caminho alternativo ao pós-modernismo (e mal feito, de capa do livro apenas) a que querem submeter todo o teatro português. Porque sabem que sem passado não há futuro, agitando o estandarte da renovação do tecido teatral, o que estão a querer fazer é a estagnação na obediência aos seus ditames de gostos subjectivos.

Demonstrada a falácia do argumento da exponenciação de estruturas não poder ser acompanhada pelas consequências a tender para uma assimptota de infinito que daí resultaria, conclui-se que a haver uma parte disso verdadeira, tal se fica a dever a um assunto para debater entre os ministérios da educação e da cultura. O argumento apresentado é uma espécie de boomerang, vêem? É como o truque do prestidigitador que atrai a atenção para uma mão, enquanto a outra faz a manipulação ilusionista. É assim como desatar a produzir e dar apoio à construção de mais e mais carroçarias de aviões e depois não os dotar de motores porque o aeroporto não tem pistas suficientes para eles descolarem ou aterrarem. São tudo, ou quase tudo, falácias grosseiras de que tão repetidas, o sujeito as automatiza e repete. Isto tem um nome em psicologia, mas não é a minha área. E tem outro em política: demagogia.

Por isso, os que detêm poderes factícios enganam os próprios ministros ou secretários de estado, apresentando-se como cordeiros. Mas se o ministro ou secretário de estado não engole a coisa, rapidamente dilaceram-no como uma alcateia ao ataque. Ou o titular da pasta lá acaba por sucumbir e obedecer-lhes, como foi o caso patente com Graça Fonseca. Sim: que passou da necessidade e prioridade de fazer contratos-programa para a imprescindibilidade dos júris!

Todavia, esta hidra de cem braços irá sendo decepada, acreditem.

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