Os apoios à artes e a Lei de Murphy
O que mais importa é tomar uma posição firme em relação à raiz do mal: a ‘fórmula’ de atribuição, antes de tudo; e a tentação da tutela ‘numerificar’ as coisas.
Bem o disse eu em artigo anterior à abertura do concurso: que ele tinha todas as condições para correr mal.
É pena que só se deitem trancas à porta depois da casa roubada. Quero dizer, em crítica à própria classe a repetição sucessiva de protestos quando saem os resultados dos Concursos de Apoio às Artes da DGArtes (ao caso os sustentados, de maior importância estrutural). Os protestos, no essencial são justos e estou solidário, de uma maneira geral, com eles. O mal estrutural que o provoca entra em hibernação, uma vez resolvido (ou não) a distribuição de dinheiros. E isso é que é muito mau. O que mais importa é tomar uma posição firme em relação à raiz do mal: a ‘fórmula’ de atribuição, antes de tudo; e a tentação da tutela ‘numerificar’ as coisas, tendendo a dispersar verbas e descartar-se da sua responsabilidade política, com ausência de critérios mensuráveis sobre a actividade e não formulários infindáveis, na maior parte inúteis.
Tenho dado repetidas vezes nota da discordância da decisão ser feita por júris ad-hoc. E hoje, felizmente, começam outros a dizer o mesmo (ver artigos de Luís Osório ou de Tânia M. Guerreiro). Independentemente da honorabilidade dos jurados, embora objectivamente levantarem dúvidas, justas ou injustas, a estes o que se pede nesses formulários é que se avalie o que é projecto apresentado, de que estão ausentes ou minimizados os critérios que deviam ser maximizados: a actividade realizada na vez da que se diz ir realizar. Importa saber (no caso dos apoios sustentados), acima de tudo, se o que foi sendo feito, às vezes em 20, 30, 40 ou mais anos, teve ou não resultados positivos. Quer no custo de cada espectador (por exemplo) e se o que se propõe está em linha com o feito ou justificado com o renovado e, por outro lado, naturalmente, as capacidades artísticas das equipas e a boa gestão dos dinheiros públicos. Sem isso não se cumpre nenhuma das alíneas do artigo constitucional (78.º) que justifica os financiamentos. O direito à criação, sim, mas também fruição pelos cidadãos.
A decisão é política e não pode ser um júri ad-hoc ficar acima do Director-Geral, que é obrigado a despachar de cruz o que determina o júri; e muito menos, acima da importância política e programática, estruturante, que compete ao próprio ministro velar por ela. É absurdo, desde logo porque o governo e a cadeia hierárquica que responde perante ele se submeta à decisão de pessoas que se juntam uma meia-dúzia (ou dúzia que fosse) para supostamente analisarem centenas de candidaturas, das quais desconhecem a actividade, na maioria dos casos e nem atendem ao elemento da coesão territorial que os financiamentos também devem reflectir. Até é, em termos humanos, impossível fazê-lo de consciência tranquila para quem a tenha.
Não é em termos de mais uma numerificação segmentada por zonas (e vaga por demasiado extensa) que cumpre com a coesão territorial. Só assim se explica que estruturas como a ACTA (Algarve) ou a Filandorra (Trás-os-Montes) tenham ficado de fora, quando, ainda por cima, tiveram pontuação de elegibilidade, mas o dinheiro se esgotou! E dois outros exemplos, para ir às grandes metrópoles (em Lisboa A Barraca e no Porto a Seiva Trupe), estarem na mesma situação, com um serviço público e verdadeiras instituições de uma e outra cidade. E igualmente de fora ficarem jovens estruturas, cujo programa é, de facto, credenciado para contribuir para o rejuvenescimento do tecido cénico em Portugal.
Sobre a questão dos dinheiros – todos sabendo que a verba é escassa para a cultura em geral –não é a aberração justificável com aumentos ‘numerificados’ a partir da escassez, porque no cômputo geral se mantêm insignificantes, mais parecendo um discurso de retórica auto-defensiva do que uma genuína preocupação com os resultados escandalosos nalguns casos. Desde logo porque o ministro das finanças, a ter por boas as declarações da sua importância, durante a covid, como presidente da câmara municipal de Lisboa, por parte do próprio primeiro-ministro, não iria agora recusar-se a alocar um reforço ao ministério da cultura para repetir a operação de salvação, a nível nacional, porque é ministro de Portugal e não presidente de um só concelho. E feito isso, porque é urgente colmatar o que resulta de injustiça e, pior, da exclusão de capazes, até pelo júri reconhecidos, releva-se, de seguida, que se proceda a uma profunda reflexão e se ponha fim ao tal como é. A primeira evidência, já testada com relativo êxito, é o regresso a contratos-programa com essas estruturas históricas e, então sim, a apreciação dos projectos mais jovens, mas por parte da própria DGArtes com um júri consultivo permanente que seja, mas não ad-hoc, antes integrado nos próprios serviços da DGArtes, a qual, consequentemente também tem de ser alvo, para isso, de um significativo aumento na dotação financeira.
Aliás, a ideia de contratos-programa (no caso referindo-se aos grupos históricos) foi anunciada pelo primeiro-ministro em vésperas de campanha eleitoral (a penúltima), nos Fenianos Portuenses, que assim seria porque “era o que mais faltava que se tivessem de sujeitar a concurso com as provas que já deram”; e, mais tarde, repetida pela ministra (Graça Fonseca) já em funções governativas. Porque desapareceu do mapa a tal decisão política e tudo ficou na mesma é um mistério, que, talvez, só se explique pela inércia e por conselhos de quem opina o mesmo, sempre, passando as críticas aos evidentes resultados desastrosos, ao lado disso. Resultados desastrosos que partem logo de erros tão grosseiros, como nos exemplos citados, a Maria do Céu Guerra (directora de A Barraca) ser condecorada pelo ministério pelo Mérito Cultural de anos a fio e, no mesmo ano, ter de se sujeitar a um concurso e, impensável, resultando na exclusão da estrutura que dirige; ou a Seiva Trupe, elogiada publicamente (e com registo vídeo gravado) pelo Director-Geral em relação à sua própria capacidade de se re-inventar e, antes, igualmente condecorada há anos.
Ora, é de facto imprescindível a duplicação ou triplicação das verbas no orçamento de Estado para a tutela, o que não tem sequer grande impacto no dito orçamento e, mesmo assim, fica abaixo do que ela contribui para o PIB, como o já demonstrou uma anterior ministra da cultura: Gabriela Canavilhas). Mas ela também só vale a pena se servir para alterar de raiz, de jure e de facto muitos vícios. Resta esperar que o actual ministro (Pedro Adão e Silva) tenha o bom-senso de acudir no imediato ao ‘disparate’ destes resultados e suas consequências, mesmo sem desautorizar o júri, bastando apoiar os elegíveis, todos; e, logo de seguida, proceder às prática dos citados contratos-programa, mas tendo em conta as especificidades e finalidade das estruturas e não o ‘tudo à molhada’. O dinheiro só por si é um garrote para estancar a sangria, mas coser a ferida e sará-la é, na sequência, indispensável.
Mas por ir já longo o artigo, para outro ficam outros aspectos, como vg, o carácter de expansão da actividade e consequente exponenciação de verbas, cujos recursos são, naturalmente, limitados. Lá iremos. E a mais.