O Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura (EPAC) entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2022, mas os primeiros sintomas começaram a chegar no Outono, a partir do dia 1 de Outubro, especialmente para quem efectuou o Registo dos Profissionais da Área da Cultura (RPAC). Está tudo engendrado para que rime, até a entidade gestora IGAC — Inspecção Geral das Actividades Culturais, só que os serviços públicos envolvidos, nomeadamente as Finanças e a Segurança Social (SS), ainda não aprenderam a escrever em verso.
Não vou detalhar neste artigo o que está em causa porque já o fizeram e bem, mas realço alguns pontos que me chegaram ao e-mail vindos da Segurança Social, citando-os:
- As contribuições devidas pelo trabalhador independente e pela entidade beneficiária da prestação são devidas mensalmente com base nos recibos ou facturas-recibos electrónicos que forem emitidos no mês anterior.
- Os Trabalhadores Independentes (TI), inscritos no Registo dos Profissionais da área da Cultura (RPAC), quando aufiram rendimentos exclusivamente da área da cultura não devem entregar a Declaração Trimestral (DT).
- Os TI que exercem outra actividade independente (em acumulação) devem apresentar a DT com referência aos rendimentos obtidos dessa outra actividade, para apuramento da sua obrigação contributiva.
- Não devem indicar na DT os rendimentos obtidos enquanto TI, inscritos no RPAC, uma vez que não são considerados nos rendimentos do TI de Regime Geral.
- A inscrição no RPAC é facultativa, o registo é gratuito e pode ser realizado a todo o tempo pelos profissionais da cultura com uma das profissões constantes da lista em anexo à Portaria n.º 29-B/2022, de 11 de Janeiro.
- Para mais informações consulte o site da Inspecção-geral das Actividades Culturais (IGAC).
O último ponto é o meu ponto de partida. Chegada nem vê-la!
Até meio de Novembro, achava que tinha feito a inscrição no RPAC porque segui um suposto registo no site da IGAC. Por alerta de uma das entidades a quem presto serviços, percebi que não. Liguei à IGAC e segui as instruções. Registei-me finalmente no registo, perdoe-se o pleonasmo obrigatório. O resto? Como passo recibos? Como faço as minhas declarações trimestrais para a SS? “Isso tem de ver com as Finanças e com a Segurança Social, mas não se preocupe que lhe envio a informação toda por e-mail.” Chegaram-me as FAQ do RPAC, o Decreto-Lei n.º 105/2021, de 29 de Novembro, a Portaria n.º 29-B/2022, de 11 de Janeiro, a Portaria n.º 29-C/2022, de 11 de Janeiro, e as Instruções de preenchimento do formulário da Portaria n.o 29-B/2022, de 11 de Janeiro. Eu tive uma disciplina bem útil de Direito na faculdade, mas talvez não chegue para tanto artigo. E na prática?
Na prática, pus-me em campo, via telefone, com a SS e com as Finanças. Resultado: “Não temos qualquer informação para a ajudar, não recebemos formação e este tema caiu-nos de pára-quedas.” Na SS, encaminharam-me para uma suposta pessoa especializada através de videochamada. Essa trabalhadora da SS que tinha um belíssimo fundo pixelizado no ecrã foi atenciosa, mas mais uma vez não me ajudou: a sua especialização não era suficiente e ainda me conseguiu dizer coisas contrárias aos pontos que eu já realcei acima. Nas Finanças, da qual tenho a melhor impressão no atendimento telefónico, tentei três vezes e só à terceira me calhou um senhor que, pelo menos, me ouviu, mas que não me soube dar respostas. Além das conversas e de um bom par de horas neste vai e não vem, deixei dois e-mails à SS (um deles com resposta, mas indicando-me os artigos, não as respostas concretas às minhas dúvidas) e um pedido de esclarecimentos no e-balcão do Portal das Finanças (ainda sem resposta).
A única coisa que eu pretendo é que os meus recibos evidenciem a suposta retenção na fonte obrigatória para a SS, já que vou deixar de poder fazer as declarações trimestrais. E essa retenção não está a ser feita, sem que eu perceba porquê. Eu, a SS e as Finanças. Pelo menos, somos muitos a apanhar bonés. Quando eu, no fundo, só quero dar dinheiro ao Estado. Mas vamos empurrando com a barriga até que as queixas sejam tantas que alguém lá tenha de fazer alguma coisa, à pressão, por reacção. Onde é que eu já vi isto? Ah, foi na pandemia. E nos novos Estatutos. E no Registo de Profissionais. De acordo com a Acção Cooperativista, um grupo no Facebook que tem apoiado bastante profissionais do sector, só foi promovida uma única sessão institucional de elucidação, que decorreu na Torre do Tombo, no dia 23 de Março de 2022.
O sector da Cultura é, por sistema, maltratado. Devemos ser dos poucos, se não formos mesmo o único, que tem de ter trabalhos noutras áreas para conseguir exercer a sua profissão. Não é hobbie, não. Ser-se artista é uma profissão. E não dissessem tantas vezes a crianças e jovens para tirar um curso que dê emprego (qual emprego?!), em vez de se dizer que sigam o que lhes está destinado seguir, por vocação, talvez tivéssemos mais artistas formados e profissionalizados, mais capazes de defender aquilo por que estudaram. Eu tenho concertos (quanto tenho!), faço teatro (quando faço!), escrevo pontualmente para diferentes meios, dou aulas em duas escolas, faço rádio e, paralelamente, sou guia turística. Adivinham o que me paga as contas, não adivinham? Tenho vergonha de dizer quanto ganhei nestes doze meses de 2022, como artista, porque trabalho muito e porque há jovens muito mais jovens do que eu, no Governo, a ganhar o praticamente o mesmo… só que num mês. E, para mim, não é este jovem que ganha muito, é a maioria que ganha muito pouco.
Não sou uma vítima porque foi a vida que escolhi. Mas sou uma trabalhadora independente precária, com dez anos de carreira, num círculo vicioso do qual só se sai com políticas públicas fortes e com apoios que cheguem a todas as estruturas, pequenas sobretudo. E, embora reconheça que se estão a dar os primeiros passos para considerar finalmente os vários e as várias profissionais da área da Cultura, há muito desnorte. Se és artista e se me estás a ler, informa-te, ouve as conferências do Curso Livre de Cultura do São Luiz, moderadas por Tiago Bartolomeu Costa e disponíveis no Spotify, e, se te for benéfico, inscreve-te no RPAC. Se não és, fala disto, passa a palavra, compra livros e discos, vê espectáculos, vai a museus, a galerias e a exposições, apoia uma estrutura artística independente. Precisamos de vocês como pão para a boca porque a poesia, sendo, ainda não é para comer.