Podemos festejar o fim do Tratado da Carta da Energia?
Apesar das dúvidas, há agora mais razões do que nunca para termos esperança de que este poderoso dinossauro seja enterrado de vez, a bem do planeta e em prol dos cidadãos.
Há vários anos que uma vintena de organizações da sociedade civil vem lutando tenazmente pelo término do Tratado da Carta da Energia (TCE), o obsoleto tratado assinado em Lisboa em 1994, que atribui poder às grandes empresas de energia para processarem os Estados em tribunais arbitrais privados (ISDS) por políticas que possam prejudicar os seus lucros. O TCE é um verdadeiro seguro de vida para investimentos nas energias (maioritariamente) fósseis, não só pelos amplos direitos que concede aos investidores (incluindo indemnizações por lucros futuros, que em muito podem ultrapassar os investimentos efectuados), como por conter uma “cláusula de caducidade” (sunset clause) que mantém os Estados aprisionados nas disposições do tratado durante mais 20 anos, após a sua retirada do TCE.
Devido ao desfasamento do TCE em relação às metas climáticas do Acordo de Paris – bem patente, por exemplo, nos dois casos ISDS instaurados contra os Países Baixos na sequência da decisão de proibir, a partir de 2030, a produção de energia a partir do carvão –, a Comissão Europeia foi mandatada para conduzir um processo de “modernização” entre os 53 Estados signatários.
Após mais de dois anos de negociações, o resultado deste processo foi considerado pelos activistas climáticos, bem como no Parlamento Europeu, como claramente insuficiente, já que a protecção a investimentos existentes em combustíveis fósseis continuaria por mais dez anos após a entrada em vigor da versão “modernizada” (note-se que a ratificação pode estender-se por vários anos) e a protecção a certos novos investimentos em gasodutos e centrais eléctricas alimentadas a gás se manteria até 2040. E isto seria válido apenas nos países que decidam aderir a este prazo; nos 23 países signatários que não pretendem aderir, os investimentos em combustíveis fósseis continuariam a ser protegidos indefinidamente.
Enquanto a Comissão insiste, quase em desespero de causa, em que o resultado obtido “alinhou o TCE com o Acordo de Paris e os objectivos ambientais [da UE]” e argumenta que o ISDS deixará de ser aplicável internamente entre os países-membros da UE (por forma a assegurar a conformidade com a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia), nas últimas semanas vários Estados-membros da UE começaram a anunciar a sua intenção de saírem do TCE.
Assim, a ministra espanhola da Transição Ecológica, Teresa Ribera, declarou que a “modernização” não trouxe “nenhuma melhoria” para reduzir a protecção aos investimentos fósseis, acrescentando, em carta à Comissão: “O Tratado modernizado continuará a prejudicar a ambição da política climática, protegendo os investimentos fósseis e pondo em causa o direito a regular da UE e dos seus Estados-membros.”
Essa foi também a constatação da Polónia, Países Baixos, França e Eslovénia que, um após outro, anunciaram já a sua retirada do TCE. Mas foi desde o anúncio, na sexta-feira passada (11/11), da retirada da Alemanha, que a balança passou agora a pender definitivamente para o lado da debandada generalizada.
A saída destes Estados, juntamente com a Itália, que abandonou o tratado em 2016, representa agora 70% da população da União Europeia.
Porém, o braço de ferro com a Comissão – que recomendou fortemente que a UE vote a favor do tratado “modernizado” – irá certamente continuar durante a próxima semana até ao dia 22 de Novembro, data em que a “modernização” será votada na Conferência Anual da Carta da Energia, na Mongólia.
É que não só os Estados-membros da UE (com excepção da Itália) são signatários do TCE, mas também a própria UE, no seu todo. Alguns países como a França, embora tenham anunciado a sua saída, tencionam votar a favor da modernização no Conselho, dessa forma contribuindo para uma maioria qualificada que permita a Bruxelas votar a favor da “modernização” no próximo dia 22.
Ora, só através de uma saída conjunta da UE será possível neutralizar a cláusula de caducidade, a qual, a manter-se, iria criar um tremendo risco de processos ISDS multimilionários contra os Estados, por exemplo, pela tomada de medidas de eliminação dos combustíveis fósseis.
O desfecho é, pois, uma incógnita, tanto mais que o assunto será apenas votado e não debatido no Conselho, provavelmente na próxima quarta-feira.
Apesar das dúvidas, há agora mais razões do que nunca para termos esperança de que este poderoso dinossauro seja enterrado de vez, a bem do planeta e do direito a regular dos Estados, em prol dos cidadãos.