Advogado estagiário, o escravo do século XXI

Tudo somado, para aceder à profissão, temos a pagar 1600 euros, um valor vergonhoso, principalmente para um jovem que ainda não tem rendimentos, uma vez que acaba de sair da universidade

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Rui Gaudencio

Elitizaram a profissão de advogado. Pobres versus ricos, uma dicotomia que afecta os que sonham ser advogados e aqueles que com dinheiro dos pais conseguem pagar a sua inscrição como advogado estagiário. Falamos de custos exorbitantes iniciais, 700 euros a pagar no acto de recebimento do pedido de inscrição, mais cerca de 100 euros de seguros.

Ulteriormente, antes de terminar o estágio, isto é, a primeira fase, é necessário pagar mais 300 euros e, como ainda não chega, antes da realização da prova escrita para a agregação à Ordem dos Advogados (OA) é imperativo pagar-se mais 500 euros, condição sine qua non de acesso à profissão. Tudo somado temos a pagar 1600 euros, um valor vergonhoso, principalmente para um jovem que ainda não tem rendimentos, uma vez que acaba de sair da universidade. E caso os pais não possam suportar esse custo, vê-se obrigado a adiar ou hipotecar uma liberdade que deveria de ser efectivamente respeitada: a liberdade de profissão, à luz do artigo 47 da nossa Constituição.

Que liberdade temos, se não podemos escolher livremente? Será livre escolher quando a nossa decisão assenta no dinheiro que temos disponível na carteira e não na escolha livre, isto é, sem custos de acesso que limitem a nossa escolha? Este jovem vê-se obrigado a desembolsar valores acima da sua taxa de esforço, independentemente da sua condição económica, financeira e social. Nada disso pesa na balança de Themis, a balança da suposta justiça que pende hoje para o lado dos “fortes”, uma balança que prolifera injustiça sobre os mais “fracos”.

Deste modo, defendo que para se aceder à OA, das duas uma: ou se acaba com todos os custos, à excepção dos seguros de acidentes pessoais e responsabilidade civil (100 euros ambos, aproximadamente); ou numa óptica de equidade, mediante apresentação de uma declaração de rendimentos, neste caso, dos pais do jovem ou do próprio caso já trabalhe, poderia isentar-se totalmente os custos para o acesso à profissão. Desta forma, a OA seria o baluarte do combate às injustiças, pois o advogado tem de ser justo e combater o injusto, ser tolerante e diferente perante a indiferença, asseverando a correcta aplicação da lei em prol da comunidade, assegurando que a humanidade e os interesses colectivos se sobrepõe a egos individualistas.

Falemos agora das condições precárias que um advogado estagiário enfrenta. Regra geral, o estágio não é remunerado: recebe-se, de vez em quando, uma “palmadinha nas costas”? É forçoso obrigar, de uma vez por todas, todas as entidades empregadoras sem excepção a terem de celebrar um contrato de trabalho sem termo e a remunerarem um advogado estagiário, no mínimo pelo valor do ordenado mínimo, progredindo à medida do tempo e da produtividade, valorizando-se assim o mérito, o esforço e a dedicação em prol da sociedade.

Muitas vezes, estamos perante a prática de “falsos recibos verdes”. Ou se é verdadeiramente um prestador de serviços, um profissional liberal, ou caso faça parte da estrutura da empresa é dependente/subordinado e tem de ter um contrato. É urgente exortar todas as entidades empregadoras e a própria OA a dignificarem a profissão e, principalmente, para quem inicia agora o seu caminho. Um advogado estagiário trabalha em média oito horas por dia e muitos nada recebem. Enquanto houver um advogado estagiário que não recebe qualquer remuneração, a luta democrática tem de continuar. Como é que um escritório de advogados representa bem a profissão de advogado quando “escraviza” o estagiário? Pressão, responsabilidade e remuneração zero. Todavia, não posso dar os meus parabéns aos escritórios que remuneram os seus pares, uma vez que tem de ser uma obrigação e não um favor.

Uma outra questão que deveria de ser discutida no seio da sociedade civil, política e pela própria OA seria a potencial eliminação do estágio de acesso à Ordem. Considero que somente deveria de existir, por exemplo, um período de aulas/formação acerca de deontologia profissional, sendo que o recém-licenciado inscrevia-se na OA e era automaticamente advogado - somente teria de assistir a essa formação.

Em relação ao debate que tem existido nos últimos tempos acerca da possível obrigação de possuir um mestrado para aceder a esta profissão, é mais uma forma de a elitizar. Não concordo, visto que todos devem ter a mesma oportunidade de ser advogado caso assim o pretendam, sem que as condições financeiras possam ser um entrave. Muitos podem não ter a possibilidade de frequentar logo após a licenciatura o mestrado, a menos que me digam que tanto a licenciatura como o mestrado são isentos de propinas.

Caso se mantenham os estágios à Ordem, os advogados estagiários não podem ser deixados ao abandono, devendo haver sempre integração, acompanhamento, orientação e valorização. A OA deve ter a missão e a capacidade de fiscalizar esse cumprimento e blindar os interesses e dignidade da profissão.

É ainda fundamental comparar os benefícios entre a Segurança Social e a CPAS, ver efectivamente à lupa os prós e contras, e após essa análise decidir qual o melhor sistema para a dignidade da profissão de advogado.

Por último, lanço um pequeno repto para reflexão colectiva: porque não permitir, de uma vez por todas, a publicidade transversal e ampla na profissão da advocacia? Uma sociedade recém-criada ou até mesmo um advogado que não tenha clientes não poder publicitar o que faz, capitalizando as redes sociais ou outros meios, mostra que a própria profissão não evolui. É necessário um impulso vanguardista, progressista, reformista e inimigo do status quo. Não é por ter sido sempre assim que tem de ser sempre assim. Esta minha geração tem de impulsionar a mudança, eu acredito!

Não obstante, indo para além do advogado estagiário, todos os estágios não remunerados devem acabar, pagando-se no mínimo o ordenado mínimo. Como disse Martin Luther King Jr. “Devemos aceitar uma decepção, mas nunca perder a esperança infinita.”

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