Futuros do Cinema
É decisivo salientar a importância, ao lado da formação universitária e politécnica do cinema, de um trabalho da sétima arte junto dos mais jovens. Este sábado assinala-se o Dia Mundial do Cinema.
Celebra-se hoje o Dia Mundial do Cinema. Desde o seu surgimento, a cada ano, as suas metamorfoses, nas suas vertentes técnicas, artísticas, culturais, sociais, têm sido fascinantes. A cada ano, às acusações de promessas falhadas, de superficialidades, de ocasos mediáticos, problemas de formatação ou atenção, o cinema vem respondendo, como media ele próprio em permanente movimento e concretização, com constantes reinvenções estéticas, produtivas de novas modalidades do visível.
Desse mesmo trajeto imparável faz parte a reconfiguração do continente-cinema, com nomes que todos os anos nos deixam, um vazio difícil de preencher. Há menos de um par de meses partiu Jean-Luc Godard que anteviu, anos antes, que todo o cinema terminaria em fragmentos.
Mas o que fazer deles? Talvez novas obras, como se de fantasmas se produzissem novas fantasmagorias? Por exemplo, é ainda dos anos 1990, o seu célebre Histoire(s) du Cinèma, que deu a ver como a História do séc. XX era ela mesma affaire de cinema. Mas esse seu gesto de partição reflexiva, que propõe uma outra linearidade histórica, mais do que filme ou documento parece hoje passagem de testemunho.
Por isso, neste dia particular penso ser interessante salientar uma figura por vezes algo esquecida do cinema, a continuidade. Não tanto a continuidade como linguagem, mas a continuidade como transmissão daquilo que o cinema vai deixando como herança a cada um dos nós. Essa continuidade permite pensar como imperativo que às histoire(s) du cinema montemos, pacientemente, os futuros do cinema.
Nessa transmissão não só entre artistas, mas também entre gerações, ganha particular relevo a educação para o cinema daqueles que agora recebem em mãos estes quase 130 anos. O cinema, não o esqueçamos, faz brilhar e transformar, a partir de dentro, a lógica educativa. Resiste ao igual e abraça o diferente e a alteridade. Como defendeu o Prof. João Mário Grilo, em 2018, numa conferência do Plano Nacional de Cinema, “o cinema é uma técnica de formar protagonistas”. Não no sentido empreendedor, mas de colocar o eu diante do mundo e suas escolhas.
Creio que é aqui que a pedagogia do cinema — junto daqueles que agora começam a ver, a filmar e a refletir com o olho e com a mão — deve tomar atenção. Godard depositou-nos em mãos este cinema não para o perpetuar, mas para o seguir metamorfoseando.
É por isso decisivo salientar a importância crescente em Portugal, ao lado da formação universitária e politécnica do cinema, de um trabalho da sétima arte junto dos mais jovens. Os exemplos são vários e estimulantes. Atualmente, os principais festivais e cineclubes do país oferecem desafiantes programas de cinema para escolas; o Plano Nacional de Cinema, que celebra uma década de existência, disponibiliza dezenas de cadernos pedagógicos sobre filmes que acompanham as suas formações de professores; o Cined, o principal projeto europeu na área da educação cinematográfica, tem há alguns anos a esta parte liderança portuguesa da parte da Cinemateca Portuguesa, juntamente com a associação Os Filhos de Lumière; ou mais recentemente, destaque para o projeto INSERT, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, e liderado pelo investigador Pedro Alves, do Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes (Escola das Artes-UCP), que se destina a reduzir as desigualdades sociais pela promoção da literacia fílmica através da produção de um conjunto de instrumentos pedagógicos digitais.
Em cada um destes projetos reside a certeza de que a transmissão do cinema é, ela mesma, a passagem aos mais jovens dos valores de comunidade, igualdade e alteridade, resolução de problemas e potência criativa de mundos. Nesta maravilhosa corrente, os próximos 130 anos aguardam-nos.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990