Isabel Camarinha: “Os pensionistas estão a ter o maior ataque às suas pensões que se poderia imaginar”

Isabel Camarinha, secretária-geral da CGTP, defende que a proposta de Orçamento do Estado para 2023 está mais preocupada em responder às necessidades das empresas do que às dos trabalhadores e dos pensionistas que vêem as suas expectativas “defraudadas”.

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Isabel Camarinha, secretária-geral da CGTP

Isabel Camarinha insiste que o Governo podia ter ido mais longe no acordo de concertação social, que não foi assinado pela CGTP, garantindo a recuperação do poder de compra, pondo fim à caducidade dos contratos colectivos e retomando as compensações por despedimento anteriores à troika.

Nas questões da legislação laboral, em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, critica “o PS”, que “quando é Governo aproveita sempre as malfeitorias que o PSD e o CDS fizeram anteriormente”.

Já em relação à semana de quatro dias, a central sindical não se oporá desde “não haja aumento da jornada diária de trabalho que já é pesadíssima”. A melhor solução, adianta a dirigente, seria reduzir o horário semanal de 40 para 35 horas de forma transversal, como já acontece na função pública.

A CGTP teria assinado o Acordo de Médio Prazo para a Melhoria dos Rendimentos, Salários e Competitividade se, sem excluir as questões salariais, ele previsse a reposição do princípio do tratamento mais favorável e acabasse com a norma da caducidade, favorecendo a negociação colectiva?
A pergunta tocou nos pontos-chave que levaram a CGTP a não subscrever o acordo. Ao contrário do que se diz, a CGTP assina acordos, assina centenas de acordos com as empresas, com as associações patronais. Mesmo na concertação social assinou vários acordos, infelizmente grande parte deles não foram cumpridos.

Neste caso concreto, vivemos um momento em que temos uma degradação enormíssima das condições de vida e de trabalho da esmagadora maioria da população e precisávamos de uma mudança que, de facto, mostrasse que se quer investir nos trabalhadores, reformados e pensionistas.

O acordo prevê aumentos inéditos do salário mínimo, um aumento médio dos salários de 5,1% em 2023 e até vai mais longe do que alguma se foi desde a troika nas indemnizações por despedimento. Não faria sentido dar-lhe um voto de confiança?
O papel aceita tudo, nós podemos pôr o que quisermos num acordo e ele ser assinado. Mas a verdade é que, se não houver negociação da contratação colectiva, como é que se vai atingir esse referencial de 5,1%, que nem sequer repõe o poder de compra? Como é que esse referencial vai ser atingido, se a contratação colectiva tem esta ferramenta na mão do patronato que é fazer caducar as convenções e não ser obrigado a que o que é colocado nos acordos colectivos seja no sentido do progresso?

O que está a dizer é que, além de não responder às necessidades, também não há garantia de que o aumento de 5,1% será cumprido pelas empresas?
Não sou eu que digo. A secretária-geral da Ahresp [Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal] já disse publicamente que será muito difícil atingirem aquele referencial.

De facto, precisávamos de alterações a outros níveis. O acordo contém um conjunto de medidas que foram cedências às confederações patronais para conseguir que o acordo fosse assinado por elas. O que dizemos é que estas reduções de impostos e benefícios fiscais dirigem-se, mais uma vez, às maiores empresas, porque são essas que têm condições para cumprir os vários requisitos obrigatórios.

Podemos então concluir que, para a CGTP, o acordo pouco ou nada tem de positivo para os trabalhadores?
Sem dúvida alguma. Pouco ou nada.

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O Governo prepara-se para apresentar na concertação social propostas para a semana de quatro dias. A ministra Ana Mendes Godinho já garantiu que não haverá perdas salariais e que os projectos-piloto deverão começar no próximo ano. Desta forma, esta modalidade seria aceitável para a CGTP?
A questão da redução do horário de trabalho há muito que é uma das nossas prioridades. Em Portugal, os trabalhadores têm horários longos e desregulados, temos a média de tempo de trabalho semanal das mais elevadas da União Europeia (41 horas e meia).

A semana de quatro dias pode ser uma resposta?
As 35 horas semanais, sem perda de retribuição, são a nossa reivindicação. O Governo, para desviar a atenção das 35 horas que já existem na Administração Pública – e seria naturalíssimo que esse fosse também o caminho para o sector privado –, lança esta questão da semana de quatro dias. Para a CGTP, o importante é que haja efectiva redução do horário de trabalho, sem que se ultrapasse o limite das oito horas diárias. Não nos opomos a nenhuma forma de reduzir o horário de trabalho, o que para nós é fundamental é que não haja aumento da jornada diária de trabalho que já é pesadíssima.

Mas as pessoas podem preferir trabalhar mais uma hora por dia e ter um dia livre na semana...
Em relação às preferências, há capacidade de acordo [dentro das empresas]. Para a CGTP, as 35 horas era o mais passível de ser aplicado num conjunto maior de empresas. A semana de quatro dias é dirigido para o sector A, para sector o B e para determinadas profissões, não é transversal. Precisamos de uma medida de redução do horário de trabalho que seja para todos.

A proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2023 tem um conjunto de medidas como a actualização dos escalões do IRS ou o aumento do Indexante de Apoios Sociais para responder à inflação. Havia margem para ir mais longe? Em que áreas?
Este OE vem aprofundar as opções que já vinham a ser tomadas. E o Governo colocar como máximo das suas prioridades a redução do défice e da dívida, significa que não se investe na valorização dos trabalhadores da Administração Pública, quando o próprio Governo propagandeia que é preciso atrair e fixar os trabalhadores, nomeadamente os mais qualificados.

Na sua perspectiva o OE tende mais para o lado das empresas do que para o dos trabalhadores e dos pensionistas?
Os pensionistas estão a ter o maior ataque às suas pensões que se poderia imaginar, porque defrauda a expectativa normal de aplicação da fórmula legal. Os pensionistas tinham de ter um aumento agora para responder às suas necessidades. Esta meia pensão, adiantada a troco de o valor da pensão em Janeiro de 2023 ser muito abaixo do que deveria ser com a aplicação da fórmula, é defraudar as expectativas e criar um abaixamento das pensões para o futuro.

Mesmo com as medidas tomadas pelo Governo para apoiar os rendimentos, e que já disse que são insuficientes, há um risco de agravamento da pobreza entre os trabalhadores?
Sem dúvida alguma. Este risco de empobrecimento é outro aspecto para o qual o Governo tinha de ter uma atenção especial. Não podemos continuar com um milhão de trabalhadores com o salário mínimo, com 70% dos trabalhadores a ganharem abaixo dos mil euros, temos que alterar isto. Ora, o que está colocado, seja de medidas para fazer face ao aumento dos preços, seja no acordo que foi assinado, seja no OE e na política geral do Governo, o que verificamos é que não há alteração das opções. O Governo precisa de olhar para o descontentamento, para a revolta, para a luta que se intensifica.

Como é que classifica este Governo de maioria absoluta? Com os sinais que já deu, o que é que perspectiva?
Este Governo, com a maioria absoluta está a concretizar as opções do Partido Socialista (PS). Durante algum tempo, com um governo minoritário, o PS foi obrigado a negociar e acabou por haver avanços, mas houve matérias em que não quis mexer.

Nas questões da legislação laboral, o PS quando é Governo aproveita sempre as malfeitorias que o PSD e o CDS fizeram anteriormente, mudando a legislação laboral para pior, desequilibrando ainda mais a relação de trabalho a favor do patronato e fragilizando mais o trabalhador.

Veja-se esta questão das compensações por despedimento colectivo ou extinção de postos de trabalho. O Governo PSD/CDS reduziu de 30 para 12 dias [por cada ano de trabalho] as compensações e criou o Fundo de Compensação do Trabalho (FCT). Agora, o PS com uma maioria absoluta, podendo reverter isto, o que fez foi aumentar de 12 para 14 dias. Isto é manter tudo na mesma, são meia dúzia de euros que os trabalhadores vão ter a mais quando podia ter sido colocando nos 30 dias. Fica bem claro o favorecimento às empresas, porque acaba o desconto para o FCT e mantém-se um valor de indemnização baixíssimo.

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A UGT considerou a alteração relevante porque assinou o acordo?
Isso terá que perguntar à UGT.

Na manifestação deste sábado, disse que a CGTP iria intensificar a luta. A Frente Comum marcou uma greve na função pública para 18 de Novembro, admite que o sector privado se junte?
Temos a Administração Pública num patamar em que o Governo já transmitiu aos sindicatos a sua proposta – que dizem que ainda está em negociação, mas já está plasmada no OE –, portanto, é o momento para a Administração pública reforçar a luta.

O sector privado também precisa de confrontar as empresas e as associações patronais com o aumento geral dos salários no imediato e em 2023.

No dia 18 de Novembro será a greve dos trabalhadores da Administração Pública, o que não significa que não haja sectores e empresas que não possam também marcar acções de luta para esse dia.

Um dos sectores onde as greves têm maior impacto é o dos transportes, porque afecta milhares de pessoas, algumas com contratos precários e salários baixos, que se vêem impedidas de ir trabalhador. Até que ponto estas greves não têm um comportamento corporativo, sem terem em conta os graves prejuízos que causam a outros trabalhadores?
Os trabalhadores dos transportes têm o direito de lutar por melhores condições de vida e de trabalho. E um trabalhador de outro sector não pode ser penalizado por ter havido greve de transportes e não ter podido ir trabalhar, isto é também garantir o direito de greve a todos.

Não sente que há uma falta de identificação dos jovens e dos trabalhadores precários em relação a formas de luta mais tradicionais?
Naturalmente que a precariedade é uma forma de tentar submeter os trabalhadores, não deixando que eles se organizem e lutem. Mas aquilo a que assistimos, e as manifestações de sábado mostram bem isso, é uma participação enorme de jovens nas nossas acções de luta.

A CGTP é então uma central sindical renovada, com muitos jovens?
Temos tido a sindicalização de milhares de jovens nos nossos sindicatos. Os jovens sentem que estão a ser maltratados e só não se sindicalizam mais porque emigram.

Portanto, na sua perspectiva não há um problema de os sindicatos atraírem os jovens e os precários?
Não. Há um problema de condições de trabalho e no modelo de desvalorização do trabalho. Um trabalhador com vínculo precário tem uma arma apontada se se sindicalizar, com o patrão a dizer: “Ai, és do sindicato? Então não te renovo o contrato”.

Há quem fale numa crise do movimento sindical tradicional. Não sente essa situação?
Não há uma crise no movimento sindical tradicional, há é um modelo de emprego que dificulta também a acção dos sindicatos, além das tentativas de limitação da actividade sindical que as empresas utilizam.

O Chega anunciou recentemente a criação de um sindicato “alternativo à esquerda” e “à luta de classes”. Teme que haja uma transferência de alguns trabalhadores para estes movimentos populistas?
Isto limita-se a cumprir um objectivo de tentar capitalizar o descontentamento e a necessidade que os trabalhadores têm de melhoria das suas condições de vida e de trabalho. O próprio líder deste partido diz que é uma central sindical de direita. Ora o que as políticas de direita têm feito é piorar as condições de vida e de trabalho, tirar direitos aos trabalhadores e reduzir as funções sociais do Estado.

É uma ameaça aos movimentos sindicais tradicionais?
Os trabalhadores terão de ver bem quem é que de facto defende os seus direitos e interesses. Os sindicatos da CGTP garantem que continuarão sempre neste caminho de defesa intransigente dos direitos e interesses dos trabalhadores numa perspectiva de desenvolvimento do país, com progresso e justiça social.

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