Cotrim de Figueiredo: mudanças no IRS são “uma cócega no enorme sufoco das famílias”

Líder da Iniciativa Liberal acusa António Costa de fazer orçamento “habilidoso”, “vagaroso” e “enganoso” e critica Marcelo: “não é papel” do Presidente ser comentador.

Veja também:


Em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, o presidente da Iniciativa Liberal (IL), João Cotrim de Figueiredo, arrasa o Orçamento do Estado (OE) de Fernando Medina.

A IL já considerou que este é um mau orçamento. Diz que há um optimismo excessivo nas previsões económicas e que os portugueses vão continuar a perder poder de compra. O que é que faria de diferente se tivesse de fazer um orçamento?
Este orçamento foi uma enorme decepção. E não é só por uma questão de optimismo ou falta dele. É um orçamento que demonstra um enorme enfoque na dívida pública e não responde àquilo que eu chamo “uma dúvida pública”, que é porque é que Portugal não cresce tanto como outros países que estão no nosso campeonato.

Além disso, o Orçamento demonstra três ou quatro facetas do PS que são típicas: o PS habilidoso porque faz uma grande festa com a redução de 10% na dívida pública, omitindo que sete desses dez pontos foram reduzidos pela mera existência da inflação; mantém a progressão do salário mínimo previsto na legislatura até 900 euros, omitindo que com a inflação inesperada esses 900 euros vão valer pouco mais de 800; é vagaroso porque foi finalmente corrigir coisas para as quais nós temos vindo a chamar a atenção — o tema das tabelas de retenção naqueles salários muito próximos do salário mínimo, que provocavam taxas marginais de 100%, finalmente é corrigido, a dedutibilidade dos prejuízos fiscais ilimitada; depois, é um PS enganoso por causa daquelas medidas com as quais faz uma grande fanfarra, mas que não significam muito na prática. Exemplo é o IRS Jovem, em que majora as deduções nos cinco primeiros anos de emprego, que tem um impacto de 12,5 euros por mês. No IVA da electricidade, as pessoas vão ter uma redução nas suas contas de 1,3 euros por mês. O aumento de dedução pelo segundo filho no IRS representa oito euros por mês. Nada disto tem real impacto e este orçamento acaba por não ter nada de estrutural.

O que fariam de diferente?
Mantínhamos a preocupação com as contas públicas, ou seja, o objectivo de chegar a cerca de 100% do PIB em dívida pública no final da legislatura. É um objectivo que nos parece correcto, prudente, sábio. Mas há outra maneira de lá chegar. Por cada ponto percentual de crescimento adicional que Portugal podia conseguir se tivesse políticas de crescimento como deve ser, com desagravamento fiscais, com simplificação, com incentivos claros ao empreendedorismo e às empresas, chegávamos aos mesmos 100% de dívida pública e com 10 mil milhões de euros de folga para reduções fiscais. Ao apostar em crescimentos de 1,3%, 1,2% nos próximos anos, estamos a deixar na mesa milhares de milhões de euros que podiam ser devolvidos aos portugueses.

Mas houve um acordo neste fim-de-semana entre o Governo e a concertação social. Os representantes das empresas viram satisfeitas algumas reivindicações já antigas. Portanto, as empresas ficaram satisfeitas com este orçamento, a IL acha que fica muito aquém. O que ofereceria mais como estímulo ao crescimento da economia?
Não sei exactamente o que é que as empresas estavam a pedir assim há tanto tempo, porque uma das coisas que ficam consagradas é que os aumentos salariais acima de 5,1% serão majorados em 50% para efeitos de IRC. Vai-se espremer isto e significa menos de 30 euros por mês para as empresas por cada trabalhador.

Acha que os empresários foram enganados?
Não, acho é que só se pode chegar a acordo sobre aquilo que está em cima da mesa e aquilo que o Governo sistematicamente põe em cima da mesa é poucochinho.

As empresas foram pouco ambiciosas?
Não vou comentar porque é que determinados parceiros sociais aceitam determinados acordos. Faço é uma leitura global das coisas e olho para o que está acordado, quer no acordo de rendimentos quer no Orçamento e digo: ‘É pouco. Isto não vai pôr Portugal a crescer.’

No último OE, a IL apresentou 127 propostas de alteração. Apenas cinco foram aprovadas. Desta vez, há uma mudança de estratégia. Apresentam apenas cerca de uma dúzia de propostas. Que propostas são essas?
Vamos recapitular. Nessa altura, reunimos e ouvimos as explicações que o Governo tinha para dar de que aquele era o Orçamento que foi chumbado e que deu origem a eleições antecipadas. Acho que foi um erro. Não vou ao ponto do Presidente da República de dizer que ficámos muito bem geridos por duodécimos, que também parece uma interpretação um bocadinho bizarra. A nossa intenção foi testar o nível de diálogo do Governo: e das nossas propostas apenas cinco foram aprovadas.

Se daí para cá a prática do PS foi ainda menos dialogante e ainda mais hegemónica, não fazia sentido estar a fazer esse favor ao PS. Vamos fazer outra coisa diferente. Vamos só falar daquelas medidas que são estruturalmente liberais e que um dia possam fazer a diferença: quatro grandes reformas (a reforma do SNS, sistema educativo, administração pública e segurança social) e uma série de outras matérias de âmbito fiscal.

Uma das propostas é a taxa única para os primeiros cinco escalões?
Sim, é uma derivação de uma proposta original. Se uma taxa única vos faz muita impressão, vamos fazer uma taxa única só para os primeiros cinco escalões, que são aqueles de menores rendimentos. Vamos fazer as correcções necessárias a essa proposta de forma a que não deixe de fora nenhuma das objecções que aqueles que não quiseram aprovar [a proposta original], nomeadamente o PS, invocaram.

O Governo vai baixar no segundo escalão a taxa de 23% para 21% e isso vai custar 200 milhões de euros por ano. Mas, para o ano, o IRS em termos absolutos vai cobrar mais 16 mil milhões de euros. Portanto, 200 milhões de euros não chegam a 1,5% da receita de IRS. Isto não é uma reforma, isto é uma cócega que se faz no enorme sufoco fiscal que as famílias sofrem.

No Reino Unido, a primeira-ministra tentou fazer uma baixa de impostos. Retira daí algumas lições para eventuais propostas da IL?
Não é muito bom fazer paralelos com coisas que não são comparáveis e faça justiça à IL de nunca fazer o que o Governo inglês tentou fazer, que é uma baixa de impostos simultaneamente com o maior aumento de despesa pública que o Reino Unido alguma vez conheceu. Fazer isto ao mesmo tempo é de facto uma loucura e os mercados reagiram como tinham de reagir. Nunca faríamos isso.

No caso da reforma da Segurança Social, gostava de perceber um bocadinho melhor por onde é que vai a IL.
Parte de um diagnóstico de que há, neste momento, 2,2 milhões de pensionistas e 5,4 milhões de trabalhadores no activo.

Foto
João Cotrim de Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal Rui Gaudêncio

O que propõem?
Cada um destes 5,4 milhões de portugueses desconta cerca de um terço do seu salário. Neste momento, já só é possível cobrir cerca de 80% das pensões a pagamento. Daqui por 20 anos, esta proporção de pensionistas e activos vai piorar ao ponto de serem o mesmo número cortado. Isto não é sustentável. A nossa solução é caminhar para um modelo misto, que seja um modelo contributivo e um modelo de capitalização. O contributivo tem plafonamento quer dos descontos quer das pensões. Depois, cada um, com os devidos incentivos fiscais, e as próprias empresas, com incentivos para fazer dessa forma, têm a oportunidade de, uma parte dela compulsória e outra facultativa, investir em instrumento de capitalização próprio.

Pedro Passos Coelho já no passado tinha defendido isso e defendia até que num período transitório o buraco que se abriria fosse pago com dívida pública.
A transição é difícil, de facto. Há formas diferentes de a fazer, mas havendo crescimento económico ao nível que nós desejamos é completamente compaginável com uma transição relativamente rápida.

Então só é possível fazer uma reforma dessas em cenário de crescimento económico?
Claro, tal como só é possível não agravar a dívida pública em tempos de intervenção financeira ou em tempos de pandemia ou em tempos de guerra se tivermos as finanças em ordem e um país a crescer.

Percebi que deixou aí uma crítica a Marcelo Rebelo de Sousa, que até elogiou o Orçamento. Acha que o Presidente está a ser pouco exigente?
Não percebi o que o Presidente quis dizer. Esteve largos minutos a comentar várias visões possíveis do Orçamento, para se concluir, no fundo, que o Governo deve ter razão porque é criticado à esquerda e à direita. Isto não é o papel do Presidente da República. Um comentário muito mais enxuto e muito mais cautelar teria sido mais que suficiente.

Marcelo continua a ajudar o Governo?
A leitura final daquela intervenção do Presidente só podia ser: como ninguém sabe o que se vai passar e como toda a gente tem razões de queixa, então este caminho deve estar certo. Não se venha pôr numa situação de comentador, fazendo uma de cravo e [outra de] ferradura. Escutei atentamente o seu discurso do 5 de Outubro e acho que há uma auto-exigência crítica que é necessária que deve começar em casa.

Se a lei das incompatibilidades dos políticos voltar ao Parlamento, como é que a IL votará aquele artigo que diz que familiares até segundo grau de governantes não podem fazer contratos com o Estado?
Não tenho exactamente a certeza da resposta. Há dois factores em relação aos quais temos de arranjar equilíbrio. Um é a transparência da gestão da coisa pública, que aconselha a que haja incompatibilidades e, algumas delas, muito bem definidas em lei. Por esse prisma, sim, votaríamos a favor.

Por outro lado, porque não vemos o impacto das políticas pela conversa de café ou pelos três meses seguintes, preocupa-nos muito o impacto que isso possa ter a prazo na qualidade do pessoal político que Portugal tem. Num país em que o Estado ainda representa 40%, 45% da economia, é muito difícil não tropeçar no Estado em qualquer esquina. Essa discussão está aberta dentro do grupo parlamentar e teremos de ter uma posição. Estamos disponíveis para ter uma discussão corajosa no sentido de admitir mais liberdade aos detentores de cargos políticos em troca de uma maior fiscalização.

É perfeitamente legítimo que alguém em causa própria decida empreender determinada actividade política e aceitar determinado cargo. Isso limita-o a si. Limitar um número indeterminado de familiares com essa sua decisão parece-me que é infringir, com uma decisão própria, a liberdade desses outros familiares. Há aqui um equilíbrio que tem de ser salvaguardado e eu não tenho já a noção exacta desse equilíbrio.

Um ex-dirigente do CDS acusou a IL de demagogia por causa das críticas que fez à ministra Ana Abrunhosa.
O caso da ministra Ana Abrunhosa é diferente porque há um óbvio conflito de interesses. Estamos a falar de um mesmo ministério que outorga fundos a um cônjuge. Parece-me evidente que há um conflito de interesses.

A IL pretende apresentar uma proposta na AR sobre esta matéria?
Estivemos ainda hoje [terça-feira] a falar nisso. Isso seria politicamente aquilo que eu gostaria de fazer — ter a coragem de dizer que há um problema, que sei que na conversa de café não vai cair muito, mas que é possível compatibilizar os conflitos de interesses com a qualidade do pessoal político que Portugal precisa muito ter para o futuro.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários