Está provado: estudo demonstra que a covid ataca fundamentalmente pessoas burras
Vivemos num mundo onde artigos científicos são parangonas pelas piores razões. Os cientistas devem ser extremamente cuidadosos na forma como comunicam suas descobertas e como refreiam as suas conclusões.
Depois de uma análise sistemática e profunda à literatura científica, a minha conclusão inevitável é que a covid veio tornar as pessoas mais suscetíveis a acreditar na primeira patranha que lhes queiram contar. O click bait constante de que somos alvo, tal como o leitor foi também neste caso dado o título sensacionalista especialmente concebido para o fazer – quiçá procurando assim a explicação por que razão o seu vizinho do primeiro direito, burro que nem uma porta, foi dos primeiros a serem atacados pelo vírus –, torna-nos bastante menos capazes de distinguir a realidade da ficção.
A razão que me leva a escrever hoje tem uma estranha origem. Dia 22 de julho fiz 47 anos, e quis o destino que estivesse a celebrar isolado no quarto, dado estar com covid, um teste positivo dois dias antes que ditou o fim prematuro de umas férias que há um ano desejava ter. É extremamente desagradável passar o dia de anos com covid. Como tal, estava a passear pelo Twitter quando vejo um título que deveria ser proibido em jornalismo de ciência: “Está confirmado: estudo pioneiro identifica alterações na menstruação por causa das vacinas contra a covid-19.” Apenas o título já seria razão para desconfiar.
Poucas coisas são raramente taxativamente confirmadas ou ainda mais raramente provadas quando se trata de ciência; a ciência evolui lentamente e com avanços e recuos constantes, mas espera-se que quando olhamos de longe o progresso seja mais ou menos constante. É o acumular de muitas evidências independentes que apontam numa mesma direção que geralmente representam progresso científico. Espicaçado pelo taxativo “está confirmado…”, fui pesquisar e percebi que vários órgãos da nossa comunicação social estavam a dar destaque a um artigo na revista Women’s Health, que apontava para alterações do ciclo menstrual como consequência da vacina para a covid-19.
Entre esses destaques encontrava-se também o da SIC, do Diário de Notícias ou mesmo do PÚBLICO. Se nos dedicássemos a pesquisar a imprensa internacional, perceberíamos que a imprensa lusa está um pouco atrasada, em que o mesmo fenómeno era reportado uma semana antes. Na realidade, o estudo original tinha sido publicado uns dias antes, a 14 de julho, em que colegas de uma universidade espanhola criavam em toda a humanidade, mais uma vez, a ilusão de que as vacinas poderiam ser responsáveis por um problema que afeta pelo menos metade dessa mesma humanidade.
Note-se que não estou a dizer que não possam existir efeitos desta vacina, de qualquer vacina, estou a dizer que se uma vacina é posta em circulação a probabilidade de eles aparecerem é baixa e ainda mais baixa a probabilidade de detetar esses efeitos, caso existam, a curto prazo. Quando a esmola é muita, o pobre desconfia, e eu como bom pobre desconfiei. Naturalmente no próprio dia fui ler o artigo em causa, afinal, estava confinado e era a própria covid que me obrigava a matar o tempo de forma útil; por que não ler sobre ela ou a sua vacina?
O resultado é uma resposta ao artigo que vai ser publicada em breve na mesma Women’s Health, uma carta ao editor que foi julgada relevante e, como tal, será publicada. O que transcrevo de seguida inclui partes da minha carta original, traduzidas e alteradas. Uso o texto original porque muito deste acabou por não ser usado. “Obrigado pela sua perspetiva apaixonada e maneira criativa de abordar as suas preocupações”, disseram-me. “Embora possa entender a sua frustração com a interpretação em tons de cinzento e a comunicação social a propagar os sentimentos ‘antivacinação’, a minha recomendação é que remova a emoção da sua escrita e se foque na disputa que tem com a metodologia da publicação original.” Espero que no PÚBLICO não haja tantas objeções à minha “paixão”.
Mas, no fundo, essa paixão não é mais do que frustração por ver publicadas, e depois ser-lhes dado destaque e honras de estado nos órgãos de comunicação social, investigações que no meu entender nunca deveriam sequer ter sido financiadas.
Qualquer pessoa, ao lhe ser pedido para responder, como no estudo em causa, a 45 perguntas sobre um determinado tópico, é muito mais provável que se dê ao trabalho de responder se o assunto for de seu interesse ou se já de si assumia haver alterações nesse tópico. De qualquer forma, a amostra é tendenciosa. Qualquer interpretação derivada de tais dados é, como tal, necessariamente enviesada.
Para minha surpresa, esse viés de autosseleção mais do que provável não é mencionado no artigo até a seção “Limitações e pontos fortes”, e a extensão dos prováveis impactos não é avaliada. Um exemplo extremo ajuda a entender o problema.
Imaginem que eu criava um questionário de 1000 perguntas que levasse dez horas para ser preenchido. Sobre se os humanos acreditam que existem alienígenas a viver entre nós. Estou seguro de que todos os que completassem o questionário diriam: os alienígenas estão entre nós! Não que estejam (e não estou a dizer que não estão!), mas a interpretação de que 100% dos humanos acreditam que alienígenas vivem entre nós seria ridícula. Mas, em geral, a maioria das pessoas concordaria que é realmente necessário um fã de teorias da conspiração para acreditar nisso, e de uma pessoa ainda mais estranha para suportar o preenchimento de um questionário de dez horas.
Estudos com amostras de autosseleção, amostras de conveniência, portanto, simplesmente não são aceitáveis em revistas científicas. A menos, claro está, que sejam capazes de discutir detalhadamente os potenciais problemas da autosseleção, o que o artigo em causa não faz. Até que ponto estudos baseados em amostras de conveniência podem valer a pena fazer é algo que, em geral, as agências de financiamento devem pensar cuidadosamente caso a caso. O facto de eu ter escrito a minha nota e esta ter sido aceite pela Woman’s Health significa que a mensagem ainda é não foi enfatizada o suficiente.
É assim que a ciência avança, mas infelizmente uma nota a dizer que não se pode concluir que a vacina tenha qualquer influência no ciclo menstrual não é digna de notícia. São os clicks que contam e, geralmente, as cartas ao editor de uma revista científica caem no esquecimento ainda antes de serem publicadas.
Mais interessante ainda, nos últimos dias saiu um novo estudo, que usa mais do que uma amostra de conveniência, e com controlos com mulheres sem vacinas e antes de serem vacinadas, que parece mostrar que pode de facto haver um ligeiro efeito das vacinas da covid na duração do ciclo menstrual. Aliás, como muitas outras coisas terão um efeito sobre o ciclo menstrual.
A minha submissão original tinha como título “Amostras de conveniência não permitem inferências em que possamos confiar”. E essa é uma mensagem que é constantemente ignorada, mas dificilmente rebatível. Vivemos num mundo onde artigos científicos são parangonas pelas piores razões. Os cientistas devem ser extremamente cuidadosos na forma como comunicam suas descobertas e como refreiam as suas conclusões. Muitas vezes a culpa nem sequer é dos cientistas, mas dos gabinetes de comunicação de imprensa das instituições, que na ânsia de publicitar enganam deliberadamente, ou não, quero acreditar.
Como cientista, preocupo-me com a possível perceção negativa do público sobre as vacinas. As vacinas são em geral seguras e já salvaram milhões de vidas em todo o mundo da covid, mas também de muitas outras doenças.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico