Fenomenologia histórica do racismo
Durante anos, a posição mais anti-racista era de cariz religioso, sobretudo cristão: se “Deus criou o Homem (todos os humanos) à sua imagem e semelhança”, as posições racistas, por porem em causa essa essencial equidade ontológica entre todos os humanos, só poderiam ser lidas como anti-cristãs.
Imagine que era um oficial romano que, há cerca de vinte séculos, chegou à Península Ibérica. A sua impressão não terá sido decerto a melhor – só encontrou povos bárbaros, analfabetos, sem hábitos de higiene, de civismo, sem Direito. Daí o célebre dito: “povos que não se governam nem se deixam governar”.
Imagine agora que era um navegante português que, há cerca de cinco séculos, acostou na África subsariana. A sua impressão não terá sido decerto melhor do que a anterior – só encontrou igualmente povos bárbaros, analfabetos, sem hábitos de higiene, de civismo, sem Direito. Sendo que agora, para acentuar a diferença, até o tom de pele era bem mais contrastante. Se lhe perguntassem se seriam humanos, talvez até hesitasse numa resposta afirmativa.
Não admira pois que, durante séculos, até as mais luminosas mentes da Europa, como Hume ou Kant, tivessem assumido posições racistas. A sua percepção de pessoas “negras” era, de facto, a de indivíduos bárbaros, analfabetos, sem hábitos de higiene, de civismo, sem Direito. De indivíduos que, pela sua condição, poderiam perfeitamente ser escravizados, como muitos outros indivíduos, de pele mais clara, o tinham sido (recorde-se que a origem etimológica do termo “escravo” remete para “eslavo”).
Essa foi, de facto, a experiência mais comum durante séculos. Daí, por mais que isso hoje nos choque, a naturalidade histórica das posições racistas. Dada essa experiência comum, era muito mais natural ser racista do que não racista. Aliás, por esses anos, a posição mais anti-racista era de cariz religioso, sobretudo cristão – à luz do cristianismo, com efeito, “Deus criou o Homem (todos os humanos) à sua imagem e semelhança”. As posições racistas, por porem em causa essa essencial equidade ontológica entre todos os humanos, só poderiam ser lidas como anti-cristãs. Por isso, não admira que as vozes mais anti-racistas na época tenham sido as vozes da Igreja, como a do nosso Padre António Vieira.
Não foi também por acaso que a ciência de base darwinista, tendo abandonado as premissas cristãs de um Deus único criador, não abandonou, ainda hoje, a tese de uma raiz única da humanidade – não pondo assim em causa essa essencial equidade ontológica entre todos os humanos. Obviamente, tudo isso hoje nos parece demasiado anacrónico e ultrapassado. Sobretudo para quem, como nós, faz parte de uma cultura histórica que, pela sua experiência acrescida, não se reteve nas primeiras impressões, podendo assim chegar a esta conclusão: “ser racista, no nosso caso, não seria apenas estúpido; seria também anti-lusófono”.