Descentralização: o monstro inglês precisa de amigos
Comece-se por descentralizar os poderes e funções que reúnem algum consenso, sem medo de testar e de inovar. Temos de avançar já! Portugal precisa urgentemente deste monstro
Quem trabalha em políticas públicas no Reino Unido está habituado a ouvir dizer que “somos o país mais centralista da Europa”. Quem é português sabe, naturalmente, que isso não é verdade.
Tal como em Portugal, também no Reino Unido há disparidades económicas enormes entre regiões. Também aqui se discute há décadas a excessiva concentração de recursos e serviços na capital. Também aqui existe um sistema administrativo demasiado dominado pela gestão central e um poder local disperso e com poucos recursos. Também aqui se discute há muito a necessidade de se criar um patamar de poder intermédio entre o governo e as autarquias. E também aqui tivemos um processo de regionalização interrompido ao virar do século na sequência de um referendo regional (embora com uma excepção).
A grande diferença – e o motivo pelo qual eu defendo que o Reino Unido será, quando muito, o número dois no infeliz ranking do centralismo – é que aqui as reformas não ficaram na gaveta. No caso particular de Inglaterra, foram adoptadas, de forma progressiva, medidas que alteraram significativamente a paisagem política e administrativa. Não falo sequer da tal excepção, a Greater London Authority (GLA), efetivamente o único governo regional em Inglaterra, criado em 2000 num processo de regionalização que devia ter sido nacional. Eu trabalho na GLA e observo todos os dias o papel fundamental que uma organização com recursos e poderes significativos (embora ainda longe do que desejaríamos) tem tido no desenvolvimento da região de Londres. Para tal contribui em grande medida a figura do mayor, com a visibilidade e capacidade de influência e de decisão que só a eleição directa consagra. Mas mais relevante ainda é o que se passa fora da capital.
O processo de descentralização política, que ficara seriamente comprometido em 2004 após rejeição em referendo no Nordeste, foi definitivamente abandonado em 2010 com a eleição do governo conservador/liberal democrata. A agenda conservadora era abertamente antir-regiões e não previa a criação de novos níveis intermédios de governação. Mas a coligação apresentou uma medida alternativa para combater as assimetrias territoriais: as Local Enterprise Partnerships (LEP).
As LEP são consórcios sub-regionais de municípios e empresas com a missão de promover o crescimento económico. Estas estruturas “suaves” de coordenação seriam responsáveis por delimitar voluntariamente a sua esfera de ação geográfica e por elaborar uma Estratégia de Desenvolvimento Económico com propostas de investimento, com base nas quais competiam por fundos atribuídos pelo governo nacional (incluindo os fundos europeus). Na primeira década, as 38 LEP criadas em Inglaterra apoiaram cerca de 200 000 empresas e contribuíram para a criação de mais de 180 000 postos de trabalho e para a construção de 93 000 unidades de habitação.
A agenda de descentralização não ficou por aqui. Em 2016, o governo conservador maioritário de David Cameron adotou legislação que permitia a um conjunto de municípios formar uma estrutura sub-regional com um líder directamente eleito (as Mayoral Combined Authorities - MCA). Estas estruturas podem receber, por via de um acordo de descentralização, uma série de competências (e respectivos fundos) em áreas como os transportes, a habitação, o apoio a empresas ou às qualificações. Até hoje foram criadas nove MCA, que abrangem as principais zonas urbanas fora de Londres e cerca de 15 milhões de pessoas. Os resultados estão à vista: as West Midlands, por exemplo, criaram uma autoridade de transportes públicos que gere já investimentos de cerca de 5 mil milhões de libras. O fundo de investimento de Greater Manchester já apoiou mais de 110 empresas e 7 450 empregos, incluindo em setores estratégicos como as tecnologias verdes ou as ciências médicas, e contribuiu para atrair mais de mil milhões de libras em investimento privado.
Mas mais interessante do que analisar o impacto das LEP ou das MCA é perceber como este processo criou uma verdadeira dinâmica de descentralização, com capacidade para evoluir de forma orgânica com novas estruturas, recursos e poderes. O modelo das LEP tem sido criticado por falta de legitimidade democrática, poucos recursos e geografias inconstantes e estará prestes a ser descontinuado. Mas foi essencial para criar uma dinâmica sub-regional de cooperação e planeamento estratégico. Sem as LEP dificilmente teria sido possível implementar as MCA. As primeiras foram fundamentais para demonstrar ao público e aos governantes (locais e nacionais) a importância e utilidade de um nível intermédio de administração. As últimas, para o concretizar verdadeiramente, com a efectiva descentralização da capacidade de decisão, só possível com o escrutínio de membros diretamente eleitos.
Curiosamente, estas estruturas intermédias de eleição directa, que tantos anticorpos geravam entre os conservadores, têm resistidos aos ciclos políticos. Theresa May não só manteve o modelo como criou novas MCA. Boris Johnson decidiu expandi-lo a zonas fora das áreas metropolitanas (e tudo indica que Liz Truss dará continuidade a esta medida). E, com este novo nível de poder surgem novos intervenientes com capacidade para reivindicar ainda mais autonomia e recursos, dando continuidade – natural e democraticamente – a esta dinâmica. Várias MCA já vão na 2.ª ou 3.ª renegociação do acordo de descentralização, adquirindo progressivamente mais responsabilidades e recursos.
Andy Burnham (mayor trabalhista de Greater Manchester) e Andy Street (mayor conservador das West Midlands) são hoje, a par de Sadiq Khan aqui em Londres, nomes incontornáveis da política britânica. Estamos apenas no início. As MCA cobrem apenas uma parte do território inglês e a sua autonomia e recursos estão ainda longe dos que encontramos nas regiões de outros países europeus. Mas já há quem diga que se criou em Inglaterra um «monstro da descentralização». Esta agenda já não está só nas mãos do governo central, já não esta totalmente sob o seu controlo. E isso é bom sinal. Só assim é possível concretizar na prática o princípio da subsidiariedade.
Talvez as duas lições mais importante do caso inglês sejam estas: (1) a descentralização mais importante é mesmo a descentralização política. Foi a eleição directa que permitiu passar de estruturas de coordenação estratégica como as LEP (ou, se quisermos, as CCDR) para um verdadeiro nível intermédio de governo com capacidade para fazer a diferença. (2) A pior acção é mesmo a inacção.
Deixemos então de discutir detalhes em Portugal e avancemos com reformas, mesmo que imperfeitas. As funções exactas, estrutura orgânica ou geografia são elementos secundários que podem (e porventura devem) ter espaço para evoluir organicamente. Neste contexto, é absolutamente incompreensível o provável novo adiamento da regionalização, que ainda há pouco parecia reunir consenso político para avançar. Temos um mapa estabilizado de cinco regiões: avance-se para a eleição directa dos seus líderes. Comece-se por descentralizar os poderes e funções que reúnem algum consenso, sem medo de testar e de inovar. Temos de avançar já! Portugal precisa urgentemente deste monstro.