“Mas, afinal, para que serve a Ordem dos Médicos?”
Os acontecimentos recentes de tentativa de intromissão em matérias técnico-científicas são inadmissíveis e vergonhosos. Éuma estratégia consistente e bem definida de tentativa de esvaziamento das funções da Ordem.
“Mas, afinal, para que serve a Ordem dos Médicos?” é a questão pertinente que tem sido colocada perante a iniciativa do Ministério da Saúde que pretende invalidar o regulamento técnico da Ordem dos Médicos sobre a constituição das equipas médicas de urgência.
O documento, que foi apresentado para consulta pública em Diário da República, não constitui novidade, pois decorre das atribuições das associações profissionais reconhecidas na Constituição da República Portuguesa. O que surpreende, pois, é a contestação apresentada pelo Ministério da Saúde.
A Ordem dos Médicos tem um papel técnico atribuído pela Lei-Quadro das Ordens Profissionais, por variada legislação publicada e pelos seus estatutos: “Contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes”. É preciso ter em atenção que esse papel técnico, na defesa da qualidade dos cuidados de saúde e da segurança dos doentes, deve ser independente de qualquer influência externa. Isto significa que, em qualquer momento, não obstante um ciclo político, pressões externas, situação orçamental do setor da Saúde ou qualquer outra intercorrência, a Ordem dos Médicos sempre defenderá a qualidade dos cuidados de saúde, as leges artis da Medicina e a deontologia médica, tanto nas suas vertentes assistenciais como formativas. É um imperativo legal, moral e ético incontestável.
Os acontecimentos recentes de tentativa de intromissão em matérias técnico-científicas são inadmissíveis e vergonhosos. Diria, até, que são inéditos num país democrático e desenvolvido. Há décadas que a Ordem dos Médicos define recomendações e regulamentos visando clarificar a boa prática médica e fornecer, destarte, linhas orientadoras para os médicos e para as instituições onde desenvolvem a sua atividade. Sem elas, o SNS e todo o sistema de saúde entrariam num caos assistencial com profundas iniquidades, dificultando qualquer tipo de proteção dos doentes.
As normas emanadas pelos órgãos técnicos da Ordem dos Médicos são, sublinhe-se, uma rede de suporte essencial para o funcionamento dos serviços que prestam cuidados de saúde. Parece lógico, mas há quem as entenda como um estorvo e considere mais apetecível a decisão política arbitrária do que a evidência técnica e científica.
No meio da crise mediática dos Serviços de Urgência deste verão, o Ministério da Saúde decidiu contestar o “Regulamento da Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência”, junto da Procuradoria-Geral da República (Diário da República, 25 de agosto, Parecer (extrato) n.º 9/2022, Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 14 de julho de 2022). O Regulamento compila os contributos dos Colégios das 28 especialidades, médicas, cirúrgicas e de diagnóstico que têm parte da sua atividade nos Serviços de Urgência, definindo os números e diferenciação médica adequada das equipas. Neste contexto, a iniciativa ministerial desencadeada por Marta Temido é incompreensível e não podia ter sido mais inoportuna.
De um ponto de vista de definição de normas técnicas, de defesa de uma medicina de qualidade, de proteção da atividade médica e dos doentes, uma intromissão política – mesmo que exercida através de instrumentos jurídicos - é sempre perigosa e nociva. O que temos vindo a assistir não é somente um ato pontual; é uma estratégia consistente e bem definida de tentativa de esvaziamento das funções da Ordem dos Médicos e dos médicos nas matérias técnicas que lhe dizem diretamente respeito e que estão consagradas na legislação existente. Infelizmente, este é um de vários exemplos. Recordo que aquando da Regulamentação do Ato Médico, em 2019, o Ministério da Saúde já tinha tentado, sem sucesso, impugná-lo junto dos tribunais.
Cada organismo deve ter as suas competências próprias e não interferir em matérias que não são do seu âmbito.
A Saúde nunca deverá ser nivelada por uma escala inferior, ao sabor da conveniência do momento ou de interesses. O Estado deve dar todas as condições para que a Ordem e os médicos possam defender a melhor evidência técnica e científica como um instrumento privilegiado da melhoria do sistema de saúde, da segurança e da defesa dos doentes.
Esperamos que o próximo titular da pasta tenha o bom-senso de separar as questões de decisão política das de decisão técnico-científica.
A Ordem dos Médicos, no respeito pelo ‘estado da arte’ da Medicina, é a garante técnica da qualidade dos cuidados de saúde, o baluarte de defesa dos doentes. Esse é o seu papel.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico