Obrigado Cave, Dino, Afonso e Maria!
Nick Cave em Lisboa, Dino d’ Santiago na festa do Avante!, a arte do DJ Afonso Macedo ou a perseverança de uma violinista amadora chamada Maria. Formas essenciais de se aceder a si próprio e aos outros.
Vamos tendo quase todas as semanas testemunhos do poder transformador da arte, em termos sociais, económicos ou políticos. Mas também enquanto potência de comunicação entre seres humanos e a forma como nos leva a reavaliar a experiência com os outros e connosco próprios.
Por exemplo no sábado, no parque da Bela Vista, em Lisboa, presenciando mais um concerto de Nick Cave. As suas performances, e dos exímios músicos que o acompanham, tornaram-se para ele – e, nesse gesto, para tanta gente – em momentos de procura de uma certa transcendência, que acabam por ser situações de descoberta, como se revelassem, em cada um, espaços emocionais a que nunca se havia acedido ou que estavam adormecidos por um quotidiano autómato. Nada de novo. A arte tem essa faculdade. A diferença, no caso de Cave, é que agora o faz perante multidões sem ceder na complexidade do que é difundido.
E que dizer de Dino d’ Santiago? No 25 de Abril, na residência oficial do primeiro-ministro António Costa, na crioulização dos Jardins da Fundação Gulbenkian, ou em qualquer praça do país, tem conseguido congregar cada vez mais gente, derrubando inúmeras barreiras (raciais, culturais, linguísticas) com uma simplicidade e honestidade desarmantes. E essa é uma boa notícia. É possível, em Portugal, haver agentes como ele, capazes de exporem feridas sem que isso crie barreiras inultrapassáveis. Mais uma vez foi isso que se viu este domingo, no encerramento da festa do Avante!, de onde saiu, depois de um espectáculo que emocionou muita gente, como símbolo de resistência perante as pressões sobre aquelas actuações.
Todos sabiam do ambiente difícil que foi criado à volta da actuação dos artistas no evento. E também já muito foi dito sobre a desastrada gestão comunicacional do PCP nos assuntos da guerra na Ucrânia, bem como sobre as interpretações enviesadas que foram feitas a algumas dessas posições, ou das simetrias entre extrema-direita e PCP. A tudo isso Dino respondeu com tranquilidade, estando no Avante! inteiro e verdadeiro, esconjurando quem faz do arremessar do medo a sua acção.
Mas não é preciso ter-se muita projecção para tocar os outros. Há dias morreu o DJ e promotor Afonso Macedo. Não era autor ou criador, no sentido clássico, mas alguém que foi sendo capaz de fomentar a sua própria utopia através de uma actividade instável, nem sempre percebida ou credibilizada. A verdade é que teve um papel importante em muitas vidas. Há pessoas que nos ajudam a elucidar aquilo que somos, abrindo-nos trilhos para descobrir coisas que, com o tempo, vamos percebendo que fazem parte de nós. Podem ser pintores ou cineastas, ou alguém como Afonso, que respirava música, seleccionando-a e expondo-a com um saber particular e, nessa dinâmica, inspirando e dando prazer a muitos outros à sua volta. Na cerimónia fúnebre, a mãe, emocionada, confessava que nunca percebera que o filho fora tão importante para tanta gente. Por vezes é assim. Há quem nos mostre lugares que se tornam o corpo de que somos feitos e nem nos apercebemos. Esses são os reais criadores.
Falo de gente profissional, mas podiam ser amadores, gente que pinta, toca ou actua, sem fazer disso o seu ganha-pão. É o caso de Maria, que conheci este fim-de-semana, quase 70 anos, tocando violino à sua maneira há cinquenta e cinco, num gesto desprendido, mas ao qual atribui um sentido essencial. Ouvi-la discorrer sobre a continuidade, dizendo que a música é, para ela, uma forma de acesso a si própria e de compromisso com a vida, ou que o acto de tocar, como o de fazer comida, tem um efeito diferente se for ela a fazê-lo, é perceber que a arte tem muitos desígnios. É experimentar em vez de apenas consumir, facilitando a autoconsciência, ajudando a entender lógicas internas e externas.
Com mais ou menos talento, mais ou menos holofotes, a necessidade de se interpretar a si mesmo, e de tentar compreender a realidade à volta, está sempre presente em Cave, Dino, Afonso ou Maria. Apesar das muitas diferenças, acabam por mostrar que somos mais semelhantes do que tendemos a aceitar, todos vulneráveis, repletos de contradições, com problemas terrenos ou dúvidas transcendentes, fazendo da criação artística uma forma de expressão de emoções e ideias. Criar é a sua forma de resistir e de mostrar a muitos outros que as suas vidas não têm de ser amputadas, subjugadas ou silenciadas. E isso é imenso. Obrigado.