E se fizéssemos uma revisão ao programa de Português?

A Mensagem, de Fernando Pessoa, recupera o famoso mito do Quinto Império — um suposto novo império civilizacional, que acreditava ser o português — e, assim como Os Lusíadas, exalta a acção humana no domínio dos mares e a superação dos limites humanos pelos heróis portugueses.

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Aula de Português Nuno Ferreira Santos

Ao longo dos três anos que compõem o ensino secundário, há alunos que perdem o gosto pela disciplina de Português – se algum dia o tiveram. Se o programa actual é defendido com unhas e dentes por muitos, por outros e outras é visto como antiquado. Os e as estudantes lutam por conseguir identificar-se com a linguagem de Fernão Lopes, Gil Vicente, Almeida Garrett, Eça de Queirós, Luís de Camões e Fernando Pessoa.

Deve-se ressalvar que não está em causa o mérito dos autores, mas sim a importância que estas obras detêm para a actualidade. Se a disciplina se destina aos estudantes, a ensinar e educar a aprender o gosto pelo português e pela leitura, não deve então ser nossa obrigação apresentar um programa actualizado e com o qual o nosso público-alvo realmente se identifique? Não deve este programa estar revestido por obras que representam os valores actuais da nossa sociedade?

Foquemo-nos em três obras.

Em Os Maias, e mediante as palavras da investigadora Vanusa Vera-Cruz, pode encontrar-se passagens de carácter racista: “A inferioridade dos africanos e o desdenho pelo negro ou qualquer aspecto relacionado à raça negra é presente na linguagem do narrador e reforçada através de acções e pensamentos de personagens e da idealização da branquitude em crianças, homens e principalmente mulheres”.

Raquel Cohen “é seráfica”, com “olhos […] veludo líquido”, enquanto a Condessa Gouvarinho é “uma senhora inglesada, de cabelo cor de cenoura, muito bem feita” e “tinha uma pele muito clara, fina e doce à vista”, já Maria Monforte é caracterizada como mulher de cabelos loiros, “a testa curta e clássica, o colo ebúrneo”, bela e sensual.

Vanusa Vera-Cruz Lima adianta que “a linguagem do narrador reproduz a superioridade da raça branca sobre a raça negra, evidenciada através do discurso, frases, escolha de palavras, pensamentos das personagens de que a raça branca merecia ter o poder absoluta sobre a raça negra”, sendo que “ao celebrar extravagantemente a branquitude, o romance envia uma mensagem de que a negritude não é algo de que se orgulhar e, portanto, como o preto e o branco estão sempre em oposição, a glorificação de um, rebaixa o outro”.

A investigadora foca a sua crítica na personagem João da Ega, evidenciando falas como “nós julgamo-nos civilizacionais, como os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão”. Lima assegura que a mensagem desta obra é que a “colonização foi necessária e benéfica”, visto que se “transmite uma imagem de África como sendo uma terra de ‘selvagens’ e ‘incivilizados’, que resulta na justificação da exploração portuguesa neste continente”.

A obra Os Lusíadas, de Luís de Camões, representa a exaltação de uma época que a nós, portugueses, nos devia envergonhar. Na Proposição, o poeta apresenta ao leitor o assunto que vai tratar ao longo do poema, propondo-se celebrar os heróis portugueses — supostas pessoas de grande valor que navegaram para além dos mares conhecidos, venceram perigos e guerras, construíram um reino novo no Oriente, expandindo a religião cristã — e glorificar o “peito ilustre lusitano”.

A Mensagem, de Fernando Pessoa, recupera o famoso mito do Quinto Império — um suposto novo império civilizacional, que acreditava ser o português — e, assim como Os Lusíadas, exalta a acção humana no domínio dos mares e a superação dos limites humanos pelos heróis portugueses.

Tal como os estudantes Guilherme Pata e Maria Inês Xavier escrevem neste artigo: “Desde cedo que somos apresentados a Os Lusíadas como sendo o epítome do orgulho português. O seu estudo começa na disciplina de Português e estabelece as bases da mensagem de Portugal como país conquistador de feitos gloriosos no passado. Estas bases vão sendo solidificadas à medida que vamos progredindo nos anos escolares e culminam na análise de Mensagem, de Fernando Pessoa, onde se encontra bastante explícito o pensamento colectivo português que ainda hoje vigora”.

O que estas obras não explicam é que os portugueses não foram descobridores, mas sim invasores. Isso foi o colonialismo, que é a forma cor-de-rosa de descrever o massacre a que subjugamos povos inteiros.

Estas três obras mantêm presentes na nossa sociedade ideais como a glorificação da época dos descobrimentos e a superioridade do povo português. Assim como estas obras, é possível constatar certos traços de ideais racistas, machistas, xenófobos e homofóbicos noutras obras do programa, fazendo-nos recordar a época do Estado Novo, em que “o sistema de ensino era regulado por manuais escolares únicos, nos quais estavam espelhados os valores tradicionais e ideológicos do Estado Português”.

É num momento como este, em que verificamos a desactualização de algumas obras do programa de Português, que nos recordamos da importância do papel do professor e da professora na formação dos nossos alunos e das nossas alunas.

Após a investigação feita por Vanussa Vera-Cruz Lima, esta aponta para a necessidade e importância em incluir uma nota pedagógica, criando assim “oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis”. Mediante esta investigação, a Associação de Professores de Português “considera que uma leitura de Os Maias implica a análise dos preconceitos raciais do discurso narrativo e das personagens, assim como inserir esse discurso no contexto histórico”.

Assim como Os Maias, obras como Os Lusíadas e Mensagem são exemplos da necessidade de uma posição mais activa por parte dos professores e das professoras de Português. Não basta apenas a existência de uma nota pedagógica referente a estas obras, é imprescindível uma actuação por parte dos e das docentes quando as abordam em sala de aula. Quiçá conseguiremos também aumentar o espírito crítico dos alunos e das alunos ao criarmos uma espécie de debate sobre os valores representados nestas obras.

Afinal, o programa e a disciplina de Português destinam-se a quem? Aos alunos e às alunas ou aos autores? A disciplina de Português serve para quê? Para homenagear autores ou para transmitir a paixão pela leitura às próximas gerações?

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