Ciência, o novo normal
Fica esta ideia: haver pré-candidaturas ao concurso de projetos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e submeter-se de início apenas um resumo e os currículos da equipa-chave, só sendo selecionados para submissão de um projeto completo (que é o que dá mais trabalho) alguns. Desta forma, liberta-se quem não tenha sucesso nessa fase para outras atividades.
Este ano, como tem sido regra, saíram em finais de julho os resultados de vários concursos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Historicamente saem nesta altura para limitar as reclamações (muitos estarão de férias), mas não sei se ainda reclama muita gente, porque raramente resulta, e os resultados são os habituais: nas Bolsa de Doutoramento boas taxas de sucesso, nos Projetos de Investigação e Desenvolvimento em Todos os Domínios Científicos e no Concurso de Estímulo ao Emprego Científico Individual (CEEC, no fundo os contratos que substituem as antigas bolsas de pós-doutoramento) taxas de sucesso vergonhosamente baixas. E é esse novo normal que vale a pena discutir.
Regularmente são feitas contas aos custos deste tipo de concursos, nomeadamente o dos Projetos. É impossível calcular com exatidão o trabalho tido, quer pelas candidaturas em si, quer porque ao elaborá-las se interrompem outros trabalhos em curso, é uma atividade a tempo inteiro. Mas, em última análise, o custo em horas de trabalho de todos os envolvidos (equipas de investigação, funcionários e avaliadores da FCT) não se compara favoravelmente com os valores distribuídos à minoria de projetos financiados; muito esforço para pouco benefício. Isto não é um sinal de eficiência.
Fica esta ideia (nada original): haver pré-candidaturas e submeter-se de início apenas um resumo e os currículos da equipa-chave, só sendo selecionados para submissão de um projeto completo (que é o que dá mais trabalho) alguns, de modo a que a taxa de sucesso seja 40% (mais ou menos a mesma das bolsas de doutoramento), e libertar quem não tenha sucesso nessa fase para outras atividades.
No fundo, levar a sério a política da chamada “poda” porque temos “cientistas apoiados pela FCT a mais”, enunciada no tempo do governo de Pedro Passos Coelho pelo imunologista António Coutinho e pela equipa do então presidente da FCT Miguel Seabra (ninguém me contou, eu ouvi). A questão é que esta política, verdade seja dita, tem sido aplicada (com alguns “soluços”) por todos os governos subsequentes, mesmo que não assumida do mesmo modo.
No meu grupo podíamos ter concorrido este ano com mais dois projetos de investigação ao concurso da FCT. Não concorremos (“ajudando” as estatísticas) por uma razão simples: as investigadoras responsáveis em causa já tinham financiamento não-FCT para os seus trabalhos e, não só não apreciam a rejeição, mesmo que esperada (há alguém não masoquista que aprecie?), como achavam que era tempo perdido, dedicável a atividades mais produtivas, e preservando do trauma associado as investigadoras mais novas que com elas trabalham.
Só pude aplaudir esta opção, e ouço histórias similares pelo país fora. Na verdade, este ano apenas apoiei para doutoramento uma aluna (teve bolsa), precisamente porque ia trabalhar num desses projetos já financiados. Seria interessante que outros colegas com financiamento (por vezes por vias nebulosas e com avaliações mais peculiares; como sucede nos projetos do PRR, projetos “institucionais” e outros) também fizessem o favor de não concorrerem a este concurso, mas não podemos levar a mal que milionários não queiram pagar impostos e outros mecanismos de solidariedade.
Uma estratégia possível seria excluir projetos já financiados por outros mecanismos. Mas essa ideia seria muito menos popular do que a das pré-candidaturas, antevejo desde já, porque os bem-aventurados só o são (também) porque pouco cedem. E dinheiro dá sempre jeito, mesmo que exatamente o mesmo trabalho seja financiado por múltiplas fontes.
Mas, na verdade, o meu maior problema são os que ainda não perceberam este novo normal, cuja resposta para tudo é a FCT, e que continuam a ficar desiludidos sem procurar outras soluções, porque sempre fizeram assim. Ou, ainda pior, que candidatam alunos a bolsas de doutoramento (com boas possibilidades de sucesso) sem garantias de lhes poderem dar condições de trabalho, que não uma secretária, porque não têm projetos. O corolário é haver projetos aparentemente espetaculares para doutoramento, que parecem dar péssimos projetos de investigação, e não é “porque os painéis de avaliação são diferentes” (resposta-padrão da FCT), mas porque as taxas de sucesso o são. Como diria outro: é a matemática, estúpido! Claro que há investigação muito boa que se faz (quase) sem dinheiro, mas a maior parte não.
Vista de fora, a política não escrita da FCT parece simples: aumentar as taxas de sucesso, não porque se aumenta o orçamento para a ciência, mas porque menos gente concorre, tal como sucedeu este ano no CEEC. Neste último caso percebe-se ainda melhor: sendo candidaturas individuais que dão acesso a um salário, quem tem o luxo de deixar a vida em suspenso com uma taxa de sucesso típica de Lotaria? E alunos de doutoramento que cresceram nesta realidade que infeta colegas mais velhos quererão meter-se nisso? Mais vale procurar desde cedo outras soluções (na indústria, no estrangeiro, onde for).
E depois admiram-se da “fuga de cérebros”, termo ironicamente cunhado quando as condições em Portugal eram muito melhores (ninguém me contou, eu vivi), o que também sublinha que nunca sabemos bem o bom (ou o mau) que temos. Mas, inconscientemente ou não, parece que, até prova em contrário, este desgaste por atrito permanente e demissão de responsabilidades é uma parte crucial da estratégia nacional para a ciência, apesar de termos tido dois ministros (Manuel Heitor, agora Elvira Fortunato) cujas primeiras declarações garantiam uma abundância de fundos, de que talvez alguns privilegiados se deem conta. O que é lamentável, pela desmotivação geral e síndromas da “cunha corporativa” e do “cada um por si” que gera.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico