Viajar é uma oportunidade para nos depararmos com realidades distintas da nossa, de aprendermos mais sobre os outros e, sobre nós.
Quando decidi visitar a República da Irlanda, a minha escolha prendeu-se essencialmente com o facto deste país ser o berço de grandes escritores: Samuel Beckett, Oscar Wilde, Bram Stoker, James Joyce (para mencionar apenas alguns) e com o imaginário Celta, que sempre me fascinou.
Ir à Irlanda do Norte surgiu como uma sugestão adicional: “Já que aí estás, vai até à Irlanda do Norte, à Calçada dos Gigantes e faz o tour dos táxis em Belfast”. Uma recomendação, simples assim. Não sabia o que me esperava.
Estivera recentemente na Escócia, também movida pela curiosidade literária.
Não vou elaborar considerações sobre qual o país mais agradável ou acolhedor. Digo-lhe apenas: tanto um como o outro valem o desconforto de um voo low cost, de estar colado ao vizinho do lado, sem espaço para alongar as pernas.
Da Irlanda do Norte falarei mais adiante.
De formas diferentes e, por razões bem distintas, aconselho com convicção: visita estes países. Pela riqueza arquitectónica e cultural (bibliotecas, livrarias, museus, onde os livros e a escrita movem multidões, um paraíso, como afirmou Jorge Luis Borges).
A República da Irlanda e a Escócia surpreendem também pelas paisagens naturais e a alegria contagiante dos irlandeses e escoceses.
Terás, todavia, de te habituares aos horários das refeições, pois as cozinhas dos pubs e dos restaurantes encerram às 20h. E, esquece, por favor, o conceito de “comida tradicional”. Tirando o fish and chips, os guisados, a apple pie e os puddings farás essencialmente uma viagem gastronómica pelo mundo com paragem obrigatória na China, Japão, Itália, Vietname, Paquistão ou Índia.
Apesar do que possas estar a pensar, estas linhas não pretendem ser somente um apelo ao lazer, mas também um convite à reflexão.
Agora que vivemos momentos de guerra na Europa importa não esquecer o passado conflituoso de países próximos.
Se reparares, mencionei de forma perfunctória (e deliberada) a visita à Irlanda do Norte e o Black Cab Tour. Ao decidir vivenciar esta experiência não a encares, por favor, como um passeio turístico, tal como eu o fiz, por ignorância, confesso. E prepara-te para um aperto no estômago.
O Black Cab Tour é um mergulho de apneia na História recente das discórdias entre católicos e protestantes na velha Europa (a religião apenas foi incorporada no conflito já existente). É uma experiência dura, crua. Muitos dos motoristas (que são também os guias) viveram este antagonismo na pele. Para eles, uma verdadeira guerra, apresentada na história como “The Troubles”.
Sem aprofundar muito, mas para contextualizar melhor, partilho alguns factos.
Em 1921, a República da Irlanda conquistou a sua independência do Reino Unido. Mas na região norte (hoje, a Irlanda do Norte) existia uma maioria cultural e politicamente alinhada com o regime britânico — os unionists ou loyalists — protestantes, que detinham o poder político. A minoria católica desejava uma Irlanda livre e unificada e, os problemas começaram. Também existiam protestantes que desejavam a unificação e católicos que preferiam continuar a fazer parte do Reino Unido.
Da segregação veio a pobreza e, como consequência, a violência (cujo principal rosto foi o IRA, o Irish Republican Army), terminada em 1998, com o designado Good Friday Agreement. Vinte e quatro anos separam estes acontecimentos dos “passeios turísticos” dos Black Cab.
Em Belfast descobri uma cidade dividida. Numa parte, as casas dos protestantes, na outra, as habitações dos católicos, a minoria. Os portões que encontrei abertos ainda são encerrados à noite (alguns permanecem destrancados em caso de emergência hospitalar); do outro lado de um dos “murais da paz” há casas com grades para proteger do arremesso de objectos indesejados. Serão necessárias várias gerações para que o conflito latente deixe de existir, para que as memórias não estejam à superfície da dor, assim me foi dito.
O mês de Julho costuma ser o mais propício ao surgimento de conflitos. O dia 12 de Julho, feriado na Irlanda do Norte, que marca o aniversário da vitória do rei protestante William III na batalha de Boyne, em 1690, sobre o rei católico deposto James II, é ainda motivo de regozijo. Trezentos e trinta e dois anos depois, os protestantes ainda comemoram este dia com fulgor. Há paradas pelas ruas (na zona católica), fogueiras gigantes onde a bandeira da Irlanda vê o fogo.
Na voz do nosso guia, Garry, sentia-se o ressentimento e a dor recente. “É tudo uma questão de intolerância, ódio e discriminação; já não existem atentados, é verdade, mas há um caldeirão muito cheio que pode derramar a qualquer momento. Sentimos isso todos os dias, no quotidiano, em pequenos pormenores.”
“Não perguntam a ninguém se é católico ou protestante, basta indagar o nome da escola onde andou para o emprego ser mais difícil de conseguir.” As matrículas dos carros também denunciam quem chega da Irlanda e não raramente, os vidros são partidos, os pneus furados, mesmo na actualidade, assim nos confidenciou um jovem empregado de mesa em Kilkenny.
“Jesus não deve gostar nada destes conflitos em nome Dele”, disse eu, em tom inocente, a um cansado Garry, mesmo no final do “passeio”.
“Já não acredito em Jesus ou em Deus, perdi a fé, desde que a minha filha de 37 anos morreu de doença prolongada, sem direito à Sua misericórdia”, respondeu-me mostrando no telemóvel um sorriso loiro.
Descobri Belfast com o Garry, que ganha a vida a partilhar a história dos conflitos entre católicos e protestantes, uma história em cuja personagem principal já não acredita. Já agora, a Calçada dos Gigantes surpreende e parece mesmo feita para gigantes. Os irlandeses mereciam caminhar nela todos os dias.