Seja grato à vida, sempre que for caso disso
Sonhar é cuidar de nós e quando cuidamos de nós, também cuidamos melhor dos outros, porque nos sentimos melhor. Não é egoísmo!
Recordo-me de, ainda criança, gostar muito de um som que surgia em alguns programas de televisão e que assinalava uma suposta transição da realidade para o sonho. Só anos depois, numa tarde de Outono passada na companhia da Maria, uma harpista de 11 anos, é que aprendi que o som se chama glissando e é produzido por uma harpa, quando passamos os dedos por todas as suas cordas.
Sonhar é bom! Transporta-nos para uma linha de horizonte suave, de doçura e projetos a concretizar. Põe, por momentos, um travão ao incessante gastar-se dos dias que passam, tantas vezes iguais a si mesmos e desencontrados de nós, da nossa essência. É motor de esperança no futuro e espelha por isso confiança no presente. E é também “uma constante da vida, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer”, como diria António Gedeão. É o oposto de viver desencantado, amargurado e emocionalmente subnutrido, a preencher os dias com tardes-de-mais.
Sonhar é cuidar de nós e quando cuidamos de nós, também cuidamos melhor dos outros, porque nos sentimos melhor. Não é egoísmo!
Num avião, em caso de despressurização da cabine, quando as máscaras de oxigénio caiem automaticamente, a indicação é a de que os adultos ponham primeiro as suas máscaras e só depois ajudem as crianças ou outras pessoas dependentes a colocá-las. Isto porque uma pessoa que entra em estado de hipoxia tem apenas alguns segundos, menos de um minuto, de consciência útil.
Temos mesmo de cuidar de nós se queremos ajudar os outros. O auto-cuidado é algo que devemos praticar diariamente e tornar-se um hábito. Cuidar intencionalmente do nosso bem-estar, através de atividades que escolhemos fazer regularmente e nos fazem sentir bem, de bem com os outros e com a vida, ajuda a manter a nossa saúde física e psicológica.
O auto-cuidado pode ser físico, como fazer uma caminhada, dançar ou fazer uma sesta; psicológico, como escrever um diário ou falar com um amigo sobre como nos sentimos; espiritual, como passar tempo na natureza, rezar ou meditar; relacional, como conviver com a família e amigos ou fazer voluntariado; profissional, como realizar um trabalho que gostamos e estabelecer limites no nosso horário laboral; financeiro, como começar uma poupança ou não fazer uma compra desnecessária.
Sem esquecer o que já sabemos: dormir bem, fazer exercício físico e ter uma alimentação saudável também são práticas que ajudam a cuidar de nós. A Ordem dos Psicólogos Portugueses tem disponível no seu site esta e outra informação útil à sua disposição, incluindo uma checklist sobre comportamentos de auto-cuidado: “Cuido bem de mim?”.
É certo que nem todos temos as mesmas oportunidades de praticar o auto-cuidado. Se a vida nos brinda com a conjugação de múltiplas responsabilidades, quando a nossa sustentabilidade financeira está em risco, ou se estamos a atravessar uma crise, encontrar tempo e espaço torna-se um desafio maior, embora nestas situações seja ainda mais importante cuidarmos de nós.
Caso esteja a pensar: “Auto-cuidado? Eu lá tenho tempo para isso!”, saiba que às vezes, dez minutos são suficientes para carregarmos baterias e nos sentirmos bem. Até um simples minuto de concentração na respiração pode ajudar. Outras vezes é necessário um dia ou mais. Não é um luxo reservado apenas a alguns privilegiados, mas nem sempre cuidar de nós é algo que fazemos espontaneamente e sem esforço. Também pode ter de ser planeado e dá trabalho priorizá-lo.
Numa altura em que muitos portugueses se encontram de férias, aproveite a pausa para refletir sobre como cuidar melhor de si. Faça uma lista de todas as atividades que o fazem sentir-se bem, relaxado e feliz. Reserve um momento do seu dia, todos os dias, para se dedicar a essas atividades. Comprometa-se com um equilíbrio entre vida pessoal e profissional. E invista e alimente relações positivas e não tóxicas com familiares e amigos. Pode ajudar a diminuir o stress, a tristeza, o desamparo e/ou a solidão e contribuir para que se sinta melhor. “Amigo é a solidão derrotada”, já dizia Alexandre O’Neill.
Seja grato à vida, sempre que for caso disso. Nada nos torna mais felizes do que sentir sermos especiais para os outros, para o seu coração. Segundo Séneca, “quem acolhe um benefício com gratidão, paga a primeira prestação da sua dívida”.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990