“Gostaria que reconhecêssemos que estamos aqui reunidos hoje no território tradicional, ancestral e não cedido pela nação Musqueam.” Na Universidade da Colúmbia Britânica (University of British Columbia - UBC, na sigla original), em Vancouver, os dias começam com o reconhecimento formal da terra que pisamos.
Ao longo dos dias, autores indígenas partilham connosco a sua arte e como através desta procuram sarar as suas feridas. Contam como os seus pais ou avós sobreviveram aos colégios internos.
Estas instituições eram maioritariamente administradas pela Igreja Católica e subsidiadas pelo Estado. Quando o ano lectivo começava, as crianças eram levadas para internatos longe das reservas onde viviam. Ao chegar, as freiras queimavam-lhes as roupas, cortavam-lhes os cabelos e desinfectavam-nas com químicos. Eram castigadas se falassem nas suas línguas, sofriam abusos físicos e sexuais, morriam de subnutrição e de doenças.
As últimas foram encerradas nos anos 90 e hoje continuam a ser encontradas sepulturas, que escondem a violência sofrida por essas crianças, junto a essas escolas.
Lisa Boivin, especialista em bioética e artista plástica, conta-nos como ao lavar o cabelo é recordada da violência do seu nascimento. Nos hospitais, os indígenas não eram tratados com a mesma dignidade, sobretudo as mulheres nas maternidades. Após o parto com fórceps, foi imediatamente afastada da mãe e levada por um assistente social para ser adoptada, sem o conhecimento ou consentimento da família. Décadas depois, também ela recebeu a visita de um assistente depois de dar à luz a sua filha, mas não a levaram.
Esta autora faz parte do Sixties Scoop, um período de 30 anos (que durou até 1984), em que as autoridades retiravam as crianças às suas comunidades e as colocavam em casas para serem adoptadas por famílias brancas.
Pintado pelas ruas de Vancouver há um slogan laranja Every Child Matters que é uma chamada de atenção, que reitera que todas as crianças desaparecidas e mortas não serão esquecidas. Esta é uma ferida muito recente para as Primeiras Nações do Canadá.
O Estado Canadiano está focado na reconciliação com os povos indígenas. Além de reconhecer os seus crimes, oferece indemnizações aos sobreviventes. O processo para ser elegível requer que os lesados descrevam aquilo por que passaram. Por isso, muitos optam por não o fazer, por uma questão de princípio ou por não quererem reviver todo o trauma que marcou as suas infâncias.
Fiquei horrorizada quando ouvi os testemunhos dos autores e li as suas histórias. Como é possível que o Estado tenha financiado estas atrocidades? Como é que a Igreja Católica foi cúmplice e infligiu tanto mal? Não é esta uma instituição que fomos ensinados a confiar?
Estas crianças foram privadas das suas famílias, da sua língua, das suas tradições. Cresceram a falar a língua do opressor, sem ter a oportunidade de se expressarem de outra forma. Por isso, ver o Papa, no início desta semana, a pedir perdão foi um momento comovente e, acredito, um passo em direcção à cura.
O processo de reconciliação faz-se também a outros níveis. No Museu de Antropologia da UBC, os artefactos dos povos indígenas estão lá com o intuito de serem preservados, mas continuam a pertencer a quem os fez. Por isso, se alguém os quiser usar, pode fazê-lo. O museu age de acordo com a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas.
A forma de o invasor impor o seu domínio é através do ataque à língua e à cultura do oprimido. Vimos isso noutras épocas, noutros lugares. Quando os alemães entraram na Polónia, na Segunda Guerra, os alvos foram os cientistas, os professores e os padres — os promotores da identidade nacional, os que fazem sobreviver a língua e a cultura que caracteriza uma nação.
Lisa Boivin pergunta-me qual é a dor no meu país, na minha comunidade. Fico sem palavras. Venho da Europa, de um país em que nos orgulhamos de ter partido e descoberto o mundo, um mundo que já existia. Deslocámos povos para nosso proveito, privámos populações da sua língua em nome da religião. Colonizámos.
Desculpamo-nos e justificamo-nos dizendo que iniciámos a globalização, que foi tudo há muitos séculos, que agora sabemos melhor.
A Alemanha insiste em reconhecer os seus erros, o horror e as atrocidades cometidas. Mas nem todos o fazem. Embora assuma a culpa por alguns massacres, a Rússia não se responsabiliza nem lamenta oficialmente, por exemplo, os mais de 20 milhões que morreram durante o estalinismo.
A humildade é uma virtude e pedir desculpa é essencial. Diz Francisco no Canadá: “Peço desculpas pela maneira como, infelizmente, muitos cristãos adoptaram a mentalidade colonialista das potências que oprimiam os povos indígenas.”
As palavras têm muita força, permitem abrir caminhos para a reconciliação, curar feridas que se alastram de geração em geração e construir alicerces para a paz.
Reconhecer os seus erros obriga o opressor a reparar os males causados, a fazer melhor e acima de tudo a não repetir os mesmos crimes. Se a Rússia alguma vez tivesse reflectido com humildade e pedido desculpa, talvez não assistíssemos agora a uma guerra em plena Europa.