“Não faz sentido que uma casa que tenha ardido seja reconstruída no mesmo local”
Tiago Oliveira lidera a agência que tenta mudar o panorama dos incêndios no país. Um passo fundamental seria enfrentar o problema das heranças indivisas — 30% das propriedades — que deixam muito território sem gestão. E critica que se reconstruam casas em locais de risco.
No rescaldo dos incêndios de 2017, o país interiorizou finalmente que não basta o combate para travar os incêndios, há sobretudo que os prevenir. Cinco anos depois, ainda há muito a fazer, admite Tiago Oliveira, presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, mas foram lançadas sementes. Mas há passos fundamentais que agora, com maioria absoluta, o Governo pode arriscar, acredita. Como a alteração do regime sucessório para evitar que a falta de entendimento entre herdeiros deixe propriedades ao abandono. Ou a criação de mecanismos que remunerem o proprietário que faça boa gestão, contribuindo assim para o sequestro de carbono ou a infiltração da água. Assim como apoiar efectivamente a pastorícia. E tentar conter a edificação em locais de risco, nem que seja obrigando a que seja feito um seguro. Um desafio político e económico, onde as empresas têm um papel crucial. Mas há novas oportunidades: as resinosas estão a valorizar-se com a guerra e há fundos europeus disponíveis.
Vamos ter um Verão em que o estado de contingência será a regra?
Este estado de contingência dura até a próxima sexta-feira e a partir de domingo a situação acalma do ponto de vista meteorológico. Haverá ainda mais, certamente, até Setembro, Outubro. Mais uma, duas semanas em que é necessário estar mais atento, há mais risco. E se as situações forem tão graves como tem sido esta, o governo antecipará medidas e a população será alertada para a necessidade de não usar o fogo nem máquinas. Isto tem sido muito importante na redução do número de incêndios, em particular a Sul do Tejo.
As declarações de estado de contingência restringem o acesso aos espaços rurais também às empresas do ramo florestal, que se queixam de asfixiamento.
As empresas são parte do problema mas têm de ser mais parte da solução. Ao utilizarem motosserras e discos de corte nestes dias, com a vegetação tão seca, são uma das causas importantes dos acidentes. Naturalmente que a actividade económica não pode ser totalmente condicionada, mas face às circunstâncias é importante que as empresas também participem e parem a actividade. As empresas têm seguros de responsabilidade social que têm limites e que não devem ser suficientes para pagar o prejuízo resultante de um incêndio que possam provocar
Não pode haver uma banalização dos estados de contingência e as pessoas começarem a dar menos importância?
Penso que não. Acho que as pessoas percebem que há um problema de calor e há a necessidade de ajustar os comportamentos. A declaração do estado de contingência dá mais visibilidade ao risco e permite que a Protecção Civil avoque recursos que habitualmente não estão totalmente disponíveis.
E levanta mais restrições.
E muda a percepção dos actores para que dêem um contributo com o seu civismo.
A comparação com Pedrógão Grande de 2017 foi a mensagem certa para fazer essa sensibilização?
Foi porque, depois da pandemia, com a guerra, e de termos tido em 2021/21 verões macios, as pessoas foram-se esquecendo e é importante que Pedrógão esteja na memória. Cada proprietário tem que ser o primeiro a gerir a vegetação à volta da sua casa e os presidentes das câmaras devem garantir que isso é feito. Essa é a verdadeira mudança cultural que nós temos conseguido fazer desde Pedrógão. Vemos muitas casas e muitas bermas de estradas já tratadas. Antigamente não se via. Mas tem de se fazer mais e de forma frequente e recorrente.
Mas depois dos incêndios de 2017 houve uma campanha muito agressiva junto das populações para limparem as matas e a GNR levantava autos e multava as pessoas. Neste momento, não temos isso.
Apostámos nos últimos anos em campanhas de proximidade. O comportamento geral da população ajusta-se à meteorologia mas observa-se que em sítios-chave é necessário ir porta-a-porta. O que estamos a ver é que, na faixa litoral, como está a ser muito fustigada pela secura, os comportamentos tradicionais, que nos dias habitualmente mais frescos não se transformam em incêndios, estão agora a provocá-los. Aquela população não está habitualmente sensibilizada para o tema. Agora reforçou-se a campanha e o governo, os políticos e os dirigentes das organizações estão a passar a mensagem.
Mas as campanhas de sensibilização, até porque se tem visto pela redução do número de ignições, têm funcionado. Falta o edifício a montante, que é a prevenção. Há muitos anos que defende que a prevenção deve prevalecer sobre o combate em termos de investimento mas o combate ainda está à frente.
Foram gastos em 2021, sem contar com os privados e com o investimento feito pelas autarquias, 306 milhões de euros. Destes, 174 milhões são combate. Em 2017, 20% dos 140 milhões de euros, que era o que se gastava na altura, era prevenção. Este ano, é 46%. Portanto, deu-se aqui um salto. O problema tem mais a ver com a capacidade de criar contratos-programa com as associações de produtores florestais, que têm de se fortalecer para também compensar as assimetrias.
E isso ainda não está a acontecer?
Demora. Por um lado, é mais fácil e mais visível fazer faixas. Estão feitas milhares de hectares. O ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] aumentou imenso a capacidade de execução e, com a EDP, a REN [Redes Energéticas Nacionais] e a IP [Infraestruturas de Portugal], já fizeram 88.000 até Dezembro de 2021. Mas têm que fazer 300 mil por ano. Isso só se consegue se o proprietário, as organizações de produtores florestais, estiverem envolvidos e para isso têm que sentir que há remuneração na floresta, que há benefício, e isso hoje em dia isso não existe.
Pelo contrário, a silvicultura tem perdido valor económico.
Há um aspecto importante que é a remuneração dos serviços públicos que as florestas prestam a todos: as chamadas externalidades positivas, que valem mais do que 70% do valor lenhoso que lá está. Ou seja, valem muito dinheiro e o proprietário ou a associação não vêem nenhum desse dinheiro. Há aqui uma correcção de mercado que tem que ser feita para pagar esses serviços públicos e remunerar melhor a madeira, que está cada vez mais valorizada no mercado europeu. Mas toda esta dinâmica económica passa por uma governação do recurso, por saber o inventário, o que é que existe, qual é o volume, o que é que se pode cortar.
Mas isso ainda não foi feito.
Está a ser feito. Tem que haver um maior reforço. O que mudou desde 2017 é que as pessoas percebem que a solução não é o combate, é a prevenção. Mas a prevenção não é só limpar mato. Passa por todo o edifício económico da floresta que está muito assimetricamente explorada. Há três ou quatro compradores e há um conjunto de pessoas que vendem madeira, basicamente rolaria, mas não são remuneradas por todos os outros bens e serviços que prestam: o oxigénio, a água. Acho que esta mudança vai acontecer porque o mercado do carbono e da água vão começar a valorizar isto. O problema da água em Portugal só se resolve se houver floresta e se esta floresta for gerida. Não é por um, não é por 100 proprietários. É por todas as pessoas que ocupam aquela bacia hidrográfica e que cooperam e colaboram na gestão da floresta naquele território. A Constituição Portuguesa não valoriza o bem público, apenas a lógica absolutista da propriedade, e isso tem que mudar. Há aqui desafios políticos muito relevantes sobre o regime sucessório e a política fiscal.
Tem sido uma das suas batalhas, o regime sucessório. Porque é que não avança?
Agora, com o governo maioritário, há todas as condições para avançar. Para andarmos mais depressa na gestão da floresta, que ocupa 70% do país, precisamos de ter uma acção colectiva dinamizada pelo mercado, numa perspectiva liberal mas também justa na distribuição do valor entre quem detém a terra e quem a explora. A gestão sustentável tem que ser feita com o regime de propriedade adequado. Não é justo que 30% dos prédios rústicos rurais sejam heranças indivisas, detidas por primos e irmãos que não se entendem e deixam aquilo ao abandono, com consequências pesadíssimas que todos nós pagamos. O esforço é político.
Foi há pouco tempo ao Parlamento. Há abertura do PS para fazer uma alteração ao regime sucessório?
O nosso papel enquanto técnicos é preocupar um bocadinho o poder político e dizer que neste conservadorismo o país anda muito devagar. As alterações climáticas estão aí e temos que andar mais depressa. A questão do regime sucessório é fundamental para garantir que o seu dono se apropria do benefício mas também que não gera externalidades negativas. Mas há também a política fiscal. Porque é que não posso deduzir a limpeza de mato que eu fiz na minha floresta? Só se tivesse contabilidade organizada mas os pequenos proprietários não têm. E porque é que, na lei das transferências, não se beneficia as autarquias que fazem uma boa gestão florestal? Porque é que se continua a utilizar os terrenos florestais para a edificação? Porque as autarquias dependem da edificação para as suas receitas. Não faz sentido.
E há os incentivos fiscais.
A economia e os políticos têm um papel decisivo na forma como vamos gerir o território. Vamos olhar para os números. Por exemplo, a questão dos seguros: não faz sentido que uma casa que tenha ardido seja reconstruída no mesmo local. E devia ser obrigatório um seguro para uma habitação que esteja no interface com a floresta. Outra questão é a do pagamento das externalidades positivas da floresta. O proprietário que gere bem deve ser beneficiado por isso, porque está a gerar oxigénio, infiltração de água. Tem que haver alguém que lhe pague. É o consumidor da cidade? Podia ser. Pode ser um outro mecanismo. A norte do Tejo, 40% da área florestal é baldios ou é Zona de Intervenção Florestal (ZIF). Tem que se estimular e capacitar tecnicamente estas entidades para gerir a vegetação com um propósito de longo prazo. Mas há um problema económico de transferência de valor porque quem gere aquele benefício não ganha nada com isso.
As pessoas precisam de perceber que são recompensadas por fazerem alguma coisa pela floresta.
Os proprietários têm que ver remuneração do seu activo porque se não desistem ou não investem porque o risco é muito elevado. E partilhar o risco. As empresas não podem ficar com tudo, têm que partilhar valor com o proprietário. Tem que haver uma relação económica mais igual e mais justa.
É uma questão de gestão mas também é uma questão de orientações claras, de sabermos que floresta queremos. Perante a crise climática, não deveria haver alterações na Estratégia Nacional para a Florestas ou nos Programas Regionais de Ordenamento Florestal [PROF] para que os produtores soubessem o que plantar e onde?
Os PROF estão aprovados. É o consenso que foi possível criar. São sete. Vamos implementar. Não vamos voltar a abrir o dossier dos PROF. Podem ser revisitados e acho bem que o sejam porque a floresta de produção com as alterações climáticas não vai aguentar. Tem que haver uma floresta mais mista, menos densa, com mais pastorícia e os PROF não prevêem isso porque é uma ferramenta muito florestal, devia ser mais agro-florestal. Mas não podemos estar sempre a planear, temos que fazer as coisas. A minha pergunta é outra. Quem é que monitoriza os planos de gestão florestal? Zero. Há que reforçar a capacidade do ICNF mas este não vai fazer tudo sozinho. Não pode fazer política, planear, fiscalizar e executar. Tem que haver uma capacidade de subcontratar as associações de produtores florestais para, no seu território, serem donos do problema. Com contratos-programa em que se comprometem a fazer X e Y e terem flexibilidade para ajustar e implementar de facto os PROF.
Mas essas organizações não cobrem o território todo.
Avançou-se bastante. Havia, em 2017, 1,2 milhões de hectares em ZIF. Hoje há 1,8. Se juntarmos a isto os 450 mil hectares de baldios estamos com 2,3, que se localizam todos a norte do Tejo, o que cobre 50% do problema. Permitem fazer muito trabalho. A estratégia europeia das florestas diz que 30% tem que ser do domínio de conservação. Portugal já tem 20. Os territórios da conservação devem permitir fazer alguma lenha e beneficiar com uma outra silvicultura mais próxima da natureza, menos intensiva. Nos outros territórios, a silvicultura pode melhorar muito as suas boas práticas. As empresas têm aqui uma resposta brutal. Quando compram uma madeira, devem obrigar, entre aspas, o proprietário que vendeu a fazer uma boa silvicultura.
As empresas já se começaram a envolver mais com os proprietários?
Têm que se envolver mais. O diálogo está muito polarizado, está muito cristalizado em ideias preconcebidas e as empresas seguiram o seu caminho. Mas elas têm que ser parte da solução. Aliás, é a única forma, porque 97% do património é privado, prossegue uma lógica rentista e as empresas têm de estar envolvidas. Se não houver um apoio dos tais serviços ambientais que permita dar outra alternativa ao proprietário para fazer um bom carvalhal, um bom sobreiral, as empresas vão conseguir pôr os eucaliptos nesses sítios mas ninguém vai ganhar porque os fogos vão destruir tudo. O país só consegue sair desta armadilha do combate se de facto garantir que aquele esqueleto das faixas de gestão do combustível está a ser implementado, tem mosaicos a serem geridos para caça, para a resina, para cogumelos, para eucalipto, para pinhal.
Essas são as soluções abundantemente referidas desde, pelo menos, 2003. Nos últimos cinco anos viu alguma coisa andar nesse sentido?
Os números mostram isso. Houve um aumento das ZIF. Há 120 hectares baldios com bons exemplos em Manteigas ou Mondim, com boas capacidades de gestão. Mas estas sementes demoram. Há mais dinheiro do PT2030, dos PRR. Agora é preciso criar um edifício público que seja capaz de garantir que as regras funcionam e garantir retorno ao proprietário. Por exemplo, o mercado voluntário de carbono em Portugal não está regulado e tem de o ser para que a apropriação daquele direito não seja só do Estado, seja também do empreendedor local. Falta um programa nacional de pastorícia extensiva, porque isto só se resolve comendo a vegetação. E onde está esse plano? Há 3 milhões de euros em medidas avulso. Tem que haver um programa para promover o número de pastores, o aumento dos rebanhos, uma vida digna para os pastores. Portanto, há coisas que têm que mudar mas o poder político está empenhado. A sociedade em geral está a mudar, mas demora. A sociedade portuguesa é conservadora, não gosta de rupturas.
Temos várias zonas do país em seca. Como é que vamos enfrentar os próximos anos de muito calor e de muitos incêndios, com uma manifesta falta de água para consumo e também necessariamente para combater incêndios?
Os incêndios combatem-se muito com ferramentas manuais e máquinas durante a noite, em particular. Os aviões ajudam a suster algumas coisas no ataque inicial, mas quando o incêndio escapa é necessário outro tipo de ferramenta. Mais importante é como é que conseguimos ter uma floresta a infiltrar água no solo e a abastecer os aquíferos. Tem de ser uma floresta mais aberta, mais pastoreada. Esta floresta exige uma capacidade de sincronização dos instrumentos de política, que têm que ser disponibilizados numa lógica de descentralização. Há um trabalho fundamental a ser feito durante os 365 dias do ano. Só há três, quatro, cinco semanas difíceis. O resto do tempo é limpar mato, é fazer silvicultura. Não é a fazer agricultura. O país não tem uma vocação agrícola, nunca teve. Hoje vejo a agenda dos cereais e acho que é um disparate do ponto de vista político insistir nisso. Faz muito mais sentido promover uma pastorícia próxima da natureza, menos intensa, mais tradicional, que reduza a nossa dependência da importação. Há uma fileira da carne, do ovino, do caprino, que tem que ser explorada.
Tem mercado?
Tem mercado. Em vez de andarmos a gastar o dinheiro no sushi, podemos comer borrego ou cabrito. Há aqui uma dimensão da dieta mediterrânica que é sabermos viver com o que temos. E sermos capazes de gerir o nosso território. Não vai haver ninguém para fazer a agricultura - nasceram 8000 pessoas no interior do país. Temos de ser capazes de mudar o mecanismo de relação com o território, transformar numa lógica mais empresarial e ter mais gestão activa com o emparcelamento funcional deste território, que tanto dá lenha, como cogumelos, castanha, pastorícia. Mas numa relação diferente entre quem tem a terra e quem tem o seu benefício. Se o país for capaz de fazer isto, consegue reduzir a vulnerabilidade aos incêndios.
Está desde 2017 à frente da agência. Sente-se realizado com o que foi fazendo?
A nossa perspectiva é o reforço institucional. Reunimos com as instituições para tentar resolver os problemas e propomos soluções aos políticos. Não é com mais meios, é com educação das pessoas, não é com mais aviões, é com mais silvicultura, não é com mais mangueiras, é com mais ovelhas. Lançámos algumas sementes. Estamos a tentar que a política das instituições encaixe, não só à escala nacional, mas também à escala regional. Temos de promover este edifício numa lógica de baixo para cima, construindo soluções por quem tem os problemas à escala local. Acho que este governo, com a maioria, vai poder dar um safanão. O problema nunca se vai resolver porque a meteorologia vai ser sempre difícil. A Europa está toda com o mesmo problema e vem aí um reforço forte. Há um papel fortíssimo das empresas porque têm que partilhar valor para estarem no mercado no longo prazo e venderem papel com certificado.
Essa é a fileira do eucalipto. E a do pinho?
Com a guerra da Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia deixaram de exportar para a Europa 16 milhões de metros cúbicos de resinosas, o que tem um impacto brutal no preço da madeira na Europa. Se a Europa disser que só compra a madeira ao exterior da UE que não resulte de desflorestação, vai haver uma procura muito grande pelo pinho português, por carvalhos e por madeira que seja feita em boas práticas.
É mais uma oportunidade.
Porque isso é que eu dizia que os economistas e os políticos têm aqui um papel fundamental. A estratégia nacional que lançámos em 2020 é um caminho proposto. Pode ser reajustado. Vamos implementá-lo até 2030 com as melhores práticas que o mundo tem.