As cartas do jogo eleitoral em Angola
O recente discurso eleitoral do Chefe de Estado angolano, referindo que a UNITA tinha feito ilusionismo passando do símbolo do galo negro ao galo branco e que após as eleições o MPLA ia comer cabidela, comida à base do sangue de galináceos, causou larga surpresa na opinião pública de Angola. Na maior parte dos casos foi apenas isso – surpresa – acrescida de comentários irónicos sobre o referido prato num momento de muitas e gerais dificuldades alimentares ou sorrisos de quem ouve uma frase engraçada.
Nos setores que pretendem um debate eleitoral de alto nível, a surpresa foi de consternação. Pelo uso da carta da raça através do símbolo das cores do galo – até por visar o atual líder mestiço da UNITA – e pela imagem do sangue. Certas áreas ligadas ao MPLA referiram que o recurso a esse tipo de linguagem, considerado como suscitando entusiasmo, não deve ser feito pelo Presidente da República mas por outros escalões do partido.
Na UNITA e seus aliados a frase deu lugar a protestos individualizados, acusando João Lourenço de ameaça pelo sangue e de racismo, dois pontos onde a UNITA está igualmente exposta, em virtude do histórico durante a guerra e de posições no plano racial ou cultural que assumia até há pouco tempo.
Por enquanto o assunto está assim e tanto pode reaparecer nas próximas semanas como ficar por aí, pois os telhados de vidro são muitos.
A carta da raça, expressão bastante popularizada nos Estados Unidos graças a importantes textos de análise, é muito jogada em todos os continentes. A extrema-direita europeia faz esse jogo, seja referindo a “identidade caucasiana” dos seus países, seja através das campanhas anti-imigrantes. Nos Estados Unidos é abertamente usada pelos supremacistas (brancos) e racialistas (negros). Em países africanos, tanto da parte de governos repressivos como de oposições racializadas, é método central da propaganda: quem discorda só pode estar sob influência de ideologias estrangeiras ou serve os antigos senhores do apartheid. Na Índia, o extremismo hindu usa essa carta em termos muito semelhantes à extrema-direita europeia, o mesmo se constatando nos diversos fundamentalismos árabo-islâmicos.
Aliás, a extrema-direita não é monopólio de nenhum continente. Está em todos, precisamente com as propostas racistas, a rejeição dos imigrantes e condicionando a cidadania a perfis do que também chamam “laços de sangue”, anulando os laços de inserção mesmo por nascimento. Regimes tipo patrícios da Roma antiga.
As eleições angolanas de 24 de agosto apresentam outras incógnitas. A primeira é como vão ser recebidos os resultados no caso da muito provável vitória do MPLA. Nos pleitos anteriores, a UNITA queixou-se de discriminação no acesso aos media, do uso da máquina administrativa em favor do MPLA e levantou interrogações sobre cadernos eleitorais e contagem de votos. Mas ficou pelo verbal. Agora possui mais capacidade de mobilização nas ruas, podendo convergir até para iniciativas de grupos com alguma experiencia na matéria.
É claro que, mesmo sendo hipótese longínqua, tem de se colocar a pergunta ao contrário, ou seja, como reagirá o MPLA se a oposição vencer. Muito menos longínqua é a hipótese desta oposição aumentar bastante a sua representação parlamentar.
Os níveis de abstenção tendem, neste momento, a ser bastante elevados. Porém, a sua avaliação precisa será dificultada em virtude de parecer incompleta nos cadernos eleitorais a exclusão das pessoas falecidas. No Quénia, que vota umas semanas antes de Angola, auditoria feita aos registos localizou cerca de dois milhões de eleitores a mais, nuns casos por duplicação de inscrição mas sobretudo pela permanência de falecidos.
Este dado não significa necessariamente má-fé. Em geral decorre das deficiências dos serviços de registo civil, afetando desde matrículas escolares até pagamento de impostos. Como em quase toda a África tropical, é provável que quase metade da população de Angola não possua certidão de nascimento.
A terceira incógnita é saber qual será a atitude dos partidários do ex-Presidente José Eduardo dos Santos. Partidários ou pessoas que hoje não o consideram tão mau como já consideraram.
Quanto às sondagens de opinião que por vezes têm aparecido, são apenas prognósticos. A única certeza é que a linguagem das campanhas vai ser a mais rude de todas as eleições angolanas. Com jogadas de várias cartas e trunfos.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico